domingo, 28 de outubro de 2012

Memórias de um sargento de Milícias -Manoel Antônio de Almeida -Cantinho Brasileiro ALDRY SUZUKI






Memórias de um sargento de Milícias
Manoel Antônio de Almeida  / Cantinho Brasileiro
Primeiro ano - Terceiro Bimestre


1. Enredo

Leonardo, o futuro sargento de milícias, filho de Leonardo-Pataca e de Maria -da-Hortaliça, é o resultado das pisadelas, beliscões e outros atos similares praticados pelo casal de imigrantes portugueses durante a travessia do Atlântico rumo ao Rio de Janeiro.

Maria-da-Hortaliça sente enjôos logo ao desembarcar e sete meses depois nasce um robusto menino, batizado com o nome do pai. A parteira - a comadre - e o barbeiro - 'de defronte' foram os padrinhos do herói, que passa junto aos pais os primeiros anos da infância. Leonardo-Pataca, que se tornara meirinho, confirma certo dia as suspeitas de que sua mulher não mantinha a mesma fidelidade que durante a viagem.

Em conseqüência, briga com ela, expulsa de casa o garoto com um enérgico pontapé e sai em busca de consolo. Ao retornar à tarde, em companhia do compadre e padrinho do menino, é informado de que Maria-da-Hortaliça, saudosa da pátria, tinha fugido e embarcado novamente, rumo a Portugal, a convite do capitão de um navio que partira pouco antes. Logo a seguir, Leonardo-Pataca vai viver com uma cigana, que, por sua vez, também o abandona.

Enquanto isso, Leonardo, o filho, adotado pelo padrinho, que muito se afeiçoara a ele, vai crescendo e a cada dia se revela mais briguento e travesso, prenunciando futuros envolvimentos com o famoso major Vidigal, que era o terror de todos os malandros e baderneiros da época.

O padrinho, com infinita paciência, tenta encaminhar o menino na prática da religião para qual este não revela grandes pendores. Coloca-o na escola e o ensina a ajudar a missa. Se na escola se revela um péssimo aluno e colega, na Igreja da Sé, onde consegue ser sacristão, vê a melhor oportunidade para grandes travessuras, como o experimenta o mestre-de-cerimônias. Este, um padre de meia idade, virtuoso por fora, mas bastante diferente por dentro, envolve-se com uma cigana, a mesma, aliás, com quem Leonardo-Pataca vivera depois da fuga de Maria-da-Hortaliça. O sacristão se vinga das reprimendas que sofre por suas constantes travessuras levando os fiéis a tomarem conhecimento dos fatos, o que faz com que seja expulso e deixe a igreja da Sé.

Para desgosto do padrinho e da madrinha, que queriam encaminhá-lo em uma profissão, Leonardo não demonstra qualquer interesse. Prefere a vida livre da vadiagem e das brincadeiras. Certo dia, em casa de Dona Maria, uma mulher das vizinhanças, conhece a sobrinha desta, Luisinha, sua futura mulher. Até que o casamento se realizasse, porém, muita coisa, iria acontecer. Leonardo-Pataca, depois de vencer o mestre-de-cerimônias na disputa pela cigana, é abandonado novamente por esta e passa a viver com a filha da parteira, Chiquinha. Daí nascem uma filha e grandes confusões, pois Chiquinha e Leonardo se detestavam e a parteira é chamada continuamente para serenar os ânimos. Por esta época aparece em cena José Manuel, um rival do futuro sargento de milícias em seu amor por Luisinha. Apesar dos esforços da comadre para afastá-lo do caminho, ela não tem sucesso. Além disso, a morte do padrinho e as contínuas brigas com Chiquinha fazem com que Leonardo saia de casa e passe a vagabundear pelos subúrbios da cidade, quando conhece Vidinha, uma mulata sensual, de olhos pretos e lábios úmidos, pela qual se apaixona imediatamente. Como Vidinha tinha outros pretendentes, cria-se grande confusão, o onipresente major Vidigal intervém e Leonardo consegue fugir, deixando-o furioso. Mas a vida continua e, com proteção da comadre, o Leonardo entra para as hostes do major Vidigal, não revelando, naturalmente, grande amor por esta nova profissão e passando boa parte de seu tempo na prisão por indisciplina. Sempre com a proteção da comadre, que recorre à ajuda de Maria Regalada, um antigo amor de Vigida, Leonardo supera todas as adversidade, chegando ao posto de sargento de milícias.

Assim, o final feliz se aproximava. José Manuel, o rival de Leonardo no amor por Luisinha, revela-se péssimo marido e, além do mais, morre providencialmente, deixando-a viúva e livre para casar com o sargento de milícias. Passando o tempo indispensável do luto, Leonardo, em uniforme da tropa, recebe Luisinha como mulher, na mesma igreja da Sé que fora palco de suas grandes travessuras como sacristão.

2- Personagens principais

Leonardo
De menino traquinas, sempre pronto para fazer travessuras e vingar-se de quem não o suportava, passa a sargento de milícias, posto de grande responsabilidade, o que caracteriza a trajetória desordenada e contraditória de um personagem que não controla o meio em que se envolve e vai, pelo contrário, deixando-se levar por ele. Leonardo é, indiscutivelmente, a figura central do enredo, apesar de muitas vezes ser ofuscado pela ação de outros personagens.

Leonardo-Pataca
Tendo conseguido chegar a meirinho, o que lhe garante uma vida de ócio, Leonardo-Pataca é apresentado como o infeliz que é perseguido sempre pela má sorte na vida pessoal, má sorte que, na verdade, é resultado da pouca inteligência e do excesso de sentimentalismo amoroso. Mas a velhice o acalma e, afinal, encontra a paz ao lado de Chiquinha.

A comadre
Como parteira, a comadre faz uso da influência e das informações que obtém no exercício de sua profissão para organizar o mundo segundo interesses. Nem sempre é bem-sucedida, mas a sorte a favorece e consegue ver o afilhado bem casado e na posição de sargento de milícias.

O compadre
De bom coração, apesar do famoso arranjei-me, o compadre, o compadre afeiçoa-se a Leonardo, no qual parece identificar-se, pois também fora um menino abandonado que tivera que enfrentar a vida sozinho. Não vive o suficiente para ver o final feliz do afilhado.

Vidigal
O terror dos malandros e vagabundos, 'o rei absoluto, o árbitro supremo' e o distribuidor dos castigos em uma sociedade em que a polícia ainda não estava organizada, o major é visto de forma simpática, principalmente porque termina sendo uma peça fundamental para que o destino de Leonardo, o herói central, se encerre de forma favorável.

Vidinha
A 'mulatinha de 18 a 20 anos...de lábios grossos e úmidos' é o primeiro personagem da ficção brasileira que aparece o estereótipo da mulata sensual que enlouquece os homens com sua vida e sem compromissos.

3- Estrutura narrativa

Memórias de um sargento de milícias, a história do filho 'da pisadela e de um beliscão', é narrado em 48 capítulos por um narrador onisciente que orienta a leitura ao longo de toda a obra apontando e comentado as intrigas, os sucessos e os fracassos dos personagens. Se a estrutura narrativa é frágil e pouco organizada, dados os constantes saltos no tempo e no espaço, os comentários do narrador, ora humorísticos, ora irônicos, lhe dão inegável unidade, em que pesem alguns lapsos, como é o caso do personagem Chiquinha, apresentada às vezes como sobrinha e às vezes como filha da comadre.

Toda a ação do romance se desenvolve no Rio de Janeiro, 'no tempo do rei', isto é, entre 1808 e 1821.

4- Comentário crítico

Esquecido durante muito tempo, reavaliado positivamente a partir de 1920, Memórias de um sargento de milícias sempre constituiu um problema para a visão tradicional da crítica literária brasileira, que, quase sempre mais preocupada, em rotular e catalogar as obras a partir das concepções idealistas próprias da periodização por estilos [romantismo, realismo, etc.] sentia-se pouco à vontade diante da irreverência e da desordem próprias de Manuel Antônio de Almeida. Irreverência e desordem que fizeram e fazem de Memórias de um sargento de milícias um dos romances mais lindos de toda a ficção brasileira do séc..

Como tantos outros romances de sua época, a obra de Manuel Antônio de Almeida foi publicada originalmente em folhetins de jornal. Cada um de seus capítulos, à semelhança das modernas telenovelas, devia provocar no leitor a curiosidade sobre o desenrolar subseqüente da história.

Mas as semelhanças entre AM e os romancistas brasileiros seus contemporâneos terminam aí. Ao contrário destes, que construíram mundo ideais, impregnados dos valores da classe dominante brasileira da época, AM centra sua atenção sobre um grupo social específico que poderia ser identificado, forçando um pouco a expressão, como a classe média do Rio de Janeiro de então.

Eram os homens livres, que, não sendo escravos mas também não dispondo de poder econômico e político, viviam, ou sobreviviam, de acordo com suas possibilidades, numa espécie de zona de penumbra na qual os limites entre os valores da ordem vigente e da marginalização completa se tornavam bastante tênues.

Por retratar com certa objetividade os costumes e hábitos deste grupo social, o romance de MAA foi qualificado, ainda no século passado de realismo. Mais tarde, por volta de 1920, ao ser reavaliado, o Memórias de um sargento de milícias foi considerado um romance picaresco a partir do argumento de que possuía as características das obras de ficção européia dos séculos XVI e XVII assim denominadas: ausência de critérios morais rígidos, um herói central de origem social pobre, uma visão de mundo ingênua e ao mesmo tempo satírica, etc.

Mas a definição não vingou, principalmente porque há uma diferença fundamental entre Leonardo e os heróis do chamado romance picaresco europeu: sua vida se limita ao espaço dos homens livres do século XIX, sem transitar através de vários grupos sociais. Além disto, ciente da ineficiência dos rótulos e catalogações da crítica tradicional, a concepção que predomina hoje na análise da obra de MAA é a que, a partir de uma perspectiva histórica, vê em Leonardo o primeiro grande 'malandro'
da ficção brasileira.

De fato, 'no tempo do rei' a ordem social definia-se a partir de dois pólos extremamente rígidos: o escravo e o senhor-de-escravos. No meio, os homens livres sem poder econômico e político representavam um grupo restrito mas, certamente, de alguma importância em termos sociais. Sua ação era definida fundamentalmente a partir da necessidade de sobreviver através de expediente raramente ligados a uma atividade econômica específica. Caracterizavam-se antes por exercerem ocupações ocasionais, pequenos serviços e alguns cargos burocráticos subalternos: vendeiro, barbeiro, parteira, miliciano, sacristão.

Leonardo, típico representante deste setor, tem como alternativa desempenhar um destes papéis. Não chega, a rigor, a optar por um ou por outro. Vê-se, antes, obrigado pelas circunstâncias, a aceitar ora esta, ora aquela ocupação. Já de início, o compadre e a comadre, seus tutores, desejam para ele uma carreira de mais destaque: advogado, padre ou algo semelhante. Leonardo desaponta-os. Pensa em casar com Luisinha, moça de certas posses. Ela, porém, escolhe alguém de nível social superior. Por fim, o 'malandro' Leonardo vê-se obrigado a entrar para o serviço militar. Não se adapta à nova carreira mas, depois de muita confusão, Vidigal, o terrível major, símbolo da ordem constituída, incumbe-se de salvar-lhe a pele e coloca-o no confortável posto de sargento de milícias. Isto não seria estranhável não fosse o fato de que a artífice de tudo é Maria Regalada, a mulher que já fora de 'vida fácil', ou seja, uma típica representante da desordem social, uma marginal.

Assim é que, entre a ordem constituída [representada por Vidigal] e a desordem tolerada [Maria Regalada], quem sai beneficiado é Leonardo. E de tudo isto, de acordo com a visão de mundo ingênua e sem conflitos que impregna o romance, não resta qualquer sentimento de culpa, tanto que ao final, em paz, o herói casa, é reformado e desfruta de cinco heranças!

O salto, em termos de enredo, pode ser um tanto brusco, mas o fato é que Leonardo escolhe a ordem e suas vantagens. Afinal, não por nada resolve esquecer Vidinha e seus encantos, aos quais faltava o charme da fortuna e do reconhecimento social.

Neste sentido moderno, Memórias de um sargento de milícias poderia ser qualificado de realista, pois MAA deixou registrado, tanto no personagem central, como nos outros, a regra constitutiva dos valores do grupo social dos homens livres do Brasil do séc. XIX: para eles ordem e desordem pouco representavam. Sem trabalhar, o que era obrigação dos escravos, e sem estar no poder, como os senhores-de-escravos, Leonardo passeia pelo mundo não levando muito em conta as convenções sociais, a não ser quando funcionam em seu próprio benefício.

Em conseqüência, sob hipótese alguma é possível aproximar Memórias de um sargento de milícias dos romances e novelas que saíram da pena de Bernardo Guimarães, Alencar e Macedo, cujos mundos ideais e quase sempre rigidamente organizados em termos éticos, encarnam e reforçam a ordem vigente. A obra de MAA encontra similar apenas nas peças de Martins Pena, que, com uma visão crítica bem mais contundentes que a do criador de Leonardo, também produziu verdadeiros instantâneos do Brasil urbano de meados do séc. XIX.

5- Estilo de época

Apesar de estar classificado como romântico, o romance Memórias de um sargento de milícias apresenta traços estéticos que ultrapassam o Romantismo. Sua composição não segue a trilha deixada pelos demais ficcionistas desse estilo. A fragmentação do enredo deixa margens de dúvida se não seria um precursor do estilo digressivo e fragmentário de Machado de Assis. Suas personagens passam longe das idealizações românticas, então mais próximas do Realismo, não raro configurando tipos. A ausência de um final feliz definitivo é outro elemento fora dos parâmetros românticos. Dentro dos romances românticos, não se direciona especificamente para os romances urbanos, que focalizam a sociedade burguesa, pois caracteriza a sociedade suburbana, a gente humilde e trabalhadora.

Sem dúvida, a situação é controversa. Devemos enxergar a presente obra como um romance de costumes, que apresenta também tendência à novela picaresca, pela presença do anti-herói Leonardinho.

Cabe ressaltar que alguns críticos enxergam na obra uma percursora do Realismo no Brasil. Há, sem dúvida, elementos realistas, mas ainda predominam componentes românticos, já que não mostra nítida intenção realista. O elementos considerados realistas presentes nessa obra filiam-se à narrativa picaresca espanhola, que tem por preocupação retratar naturalmente os costumes populares sem idealizá-los.

6- Estilo individual

Como vimos, a presente obra foge das características gerais do Romantismo, apresentando características próprias. O estilo da obra, bem como de seu autor, apresenta tendências bem pessoais e marcantes. Destaquemos algumas dessas tendências:

a. Emprego de linguagem bem coloquial, marcada por incorreções e linguajar lusitano, interiorano ou das periferias de Lisboa, lembrando que boa parte das personagens são imigrantes portugueses ou gente simples do povo.

b. Ausência de personagens idealizadas e de análise psicológica: o romance prefere focalizar os costumes, hábitos e cacoetes das pessoas de camadas sociais inferiores, numa construção mais realista da sociedade suburbana do início do século XIX.

c. Presença do humorismo, do ridículo e do burlesco: o tom geral da obra segue a tendência da gozação, marcado que está pela construção de personagens que tendem para o caricatural, para o mais absoluto ridículo. A essa tendência chamamos carnavalização.

d. Presença da ironia.

e. Presença da linguagem: A obra volta-se para si mesma, comentando os procedimentos que estão sendo empregados: palavras utilizadas, explicações sobre capítulos ou personagens que desaparecem de cena.

f. Presença de digressões: a narrativa não segue a ordem linear dos fatos, é episódica e, não raro, foge da história para comentar fatos paralelos ou para dar explicações sobre o próprio livro.

g. Presença do narrador intruso, que o tempo todo se intromete para dar explicações, analisar fatos ou personagens e conversar com o leitor.

h. Presença do leitor incluso, com quem o narrador procura estabelecer conversação: 'Pôr estas palavras vê-se que ele suspeitaria alguma coisa; e saiba o leitor que suspeitara a verdade'.

A obra deixa transparecer a presença de diversas figuras de linguagem, bem como, hipérboles, comparações, metáforas, perífrases, trocadilhos, metonímias, linguagens forenses, sarcasmos, barbarismos, etc...

7- Problemática e principais temas

Mesmo com o risco de nos tornarmos repetitivos, retomamos a problemática central da presente obra. Afinal, temos ou não uma obra que foge uma rígida classificação? Sem dúvida a resposta a esta questão é evidente uma vez que a obra apresenta elementos que escapam à típica caracterização dos moldes em voga no Romantismo, mas não atende de forma direta às perspectivas do Realismo, que sequer havia começado na Europa. É um romance que apresenta variáveis, tais como: novela picaresca, romance de costumes e romance de aventuras, sendo considerado por alguns um romance anti-romântico, o que implicaria em tendências precursoras do Realismo, que só se confirmaria a partir das Memórias Póstumas de Brás Cubas [1881], de Machado de Assis. A presença da realidade objetiva é inquestionável, mas apenas isto não configura o Realismo na linha flaubertiana.

A obra é fundamentalmente humorística, estabelecendo contatos com gênero picaresco espanhol através do protagonista, que traz em si toda esperteza e picardia de um anti-herói, Leonardinho foi o antecessor em linhagem direta de Macunaíma, de Mário de Andrade e o continuador, no Brasil, de Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes.

Retrato vivo dos costumes bem brasileiros do início do séc. XIX, romance focaliza um sem número de tipos populares do RJ suburbano. Esse painel pitoresco retrata a alegria de viver, a malícia da época, as fofocas, as beatices, as crendices, as festas, as profissões, os costumes e hábitos de nosso povo. Leonardinho é o típico malandro carioca, cheio de picardia, esperteza, sarcasmo e desejo de vingança.

Podemos destacar entre as temáticas fundamentais as críticas ao aurtoritarismo policial, à religião, ao clero imoral, ao interesse econômico, ao casamento como meio de ascensão social e à vadiagem como meio de vida. Há, ainda, uma espécie de paródia do próprio Romantismo, montado nessa obra às avessas, abandonando os adocicados finais felizes para deixar nas entrelinhas uma sucessão de fatos tristes que poderiam vir a acontecer.
Bom estudo meus amores, e depois postarei as histórias inventadas dos demais alunos, com o mesmo contexto - que ficaram maravilhosas...
bjs com carinho da Prof Dr Master Reikiana
Aldry Suzuki

Macunaíma /Mario de Andrade -Cantinho Brasileiro - ALDRY SUZUKI





Macunaíma
Mario de Andrade
 - Cantinho  Brasileiro


Cap.I - MACUNAÍMA

        Relata o nascimento do herói, "preto retinto, filho do medo na noite", nascido de uma índia tapanhumas no meio da selva, Macunaíma aprende tardiamente a falar, mas, quando o faz (com 6 anos ao lhe darem água no chocoalho), tem pronto o seu bordão: "Ai, que preguiça!..."
        Tinha dois irmãos, Jiguê e Maanape, um velhinho feiticeiro. A diversão de Macunaíma era decepar cabeças de saúva e tomar banho nu junto com a família e as cunhãs, cujas partes íntimas agradavam muito o herói; enquanto "guspia"na cara dos machos.
        À noite, de cima de sua rede onde dormia, mijava quente na velha mãe, sonhando imoralidades e dando coices no ar.
        A companheira de Jiguê, Sofará, ajudava a cuidar de Macunaíma, levando-o ao mato para passear, mas chegando lá ele se transformava em um lindo príncipe e "brincava" muito com ela. Quando Jiguê chegava na maloca e encontrava o serviço por fazer, catava os carrapatos dela e dava-lhe uma grande surra, a qual recebia calada.
        Macunaíma conseguiu capturar uma anta quando estava no mato com com Sofará. Neste dia a cunhã se transformou em uma onça suçuarana e "brincou" violentamente com o herói, sendo assistidos por Jiguê. Este, deu uma surra no herói , levando Sofará de volta ao pai.
        "O berreiro foi tão grande que encurtou o tamanho da noite e os pássaros caíram de susto e transformaram em pedras."

Cap.II - MAIORIDADE

        Jiguê arranja uma companheira nova, Iriqui, que trazia escondido um ratão na maçaroca dos cabelos.
        Falta o que comer na maloca e para se divertir às custas dos manos, Macunaíma mente que tem timbó no rio, assim eles passam o dia todo procurando timbó, enquanto o herói afirma que timbó já tinha sido gente um dia...
        Faz uma mágica para a mãe levando-a para o outro lado do rio, onde havia fartura de caça e frutas, mas ao perceber que a mãe pretende levar alimentos para os outros, transporta-a de volta sem nada. Com raiva, a velha leva-o para o Cafundó do Judas, abandonando-o onde não poderia crescer nunca mais; lá encontrou Currupira, de cuja perna cortou um pedaço e deu para Macunaíma comer, intencionando devorá-lo depois. Macunaíma foge, enquanto Currupira chama pelo pedaço de sua perna que lhe responde: "O que foi?". Assim, ele vomita o pedaço de carne e some.
        Uma cotia derrama-lhe uma poção mágica que o faz crescer, contudo assustado desvia e a cabeça do herói não é atingida pela magia, ficando com cara de piá.
        Chegando na maloca, fica sozinho com Iriqui e "brinca" com ela, tornando-se seu companheiro. Em uma caçada, persegue uma viada matando-a, ao chegar perto desmaia: a viada era sua velha mãe!
        "Então Macunaíma deu a mão para Iriqui, Iriqui deu a mão pra Maanape, Maanape deu a mão pra Jiguê e os quatro partiram por esse mundo"

Cap.III - CI, A MÃE DO MATO

        Um dia encontrou Ci dormindo no mato e quis "brincar"com ela, porém a cunhã defendeu-se violentamente, os manos precisaram acudi-lo, pois Ci o estava quase matando. Depois de uma paulada na cabeça, ela desmaiou e o herói pôde "bricar"com a mãe do mato. Agora virara Imperador do Mato Virgem, por isso muitas jandaias, araras, tuins, coricas, periquitos etc, vieram saudar Macunaíma.
        Passara agora a viver com Ci, por quem se apaixorara depois de com ela "brincar" em uma rede trançada por ela com os próprios cabelos. Depois de seis meses tiveram um filho que logo morreu ao mamar no peito da mãe, pois este estava contaminado pelo veneno da Cobra Preta.
        Neste dia Ci entraga a Macunaíma uma muiraquitã e sobe ao céu, transformando-se Na Beta do Centauro e no túmulo do filho nasceu um pé de guaraná.
        "Com as frutinhas piladas dessa planta é que a gente cura muita doença e se refresca durante o calorão de Vei, a Sol".

Cap. IV - BOIÚNA LUNA

        Fez da muiraquitã um tembetá pendurado no beiço inferior e padeçou muita saudade de Ci. Assim, choroso, seguiu viagem com os manos, sempre acompanhado das jandaias, araras etc.
        Neste capítulo, o narrador relata a lenda do surgimento da Lua. Esta era a boiúna Capei que deveria possuir uma virgem de nome Naipi, porém Naipi entregara sua virgindade ao moço Titçatê. Capei transformou Naipi em uma cachoeira chorosa e o moço em uma planta de flores roxas. Macunaíma ouviu a história da Cascata e disse-lhe que tinha vontade de matar Capei por isso. Capei saiu de baixo de Naipi, onde morava vigiando o sexo da moça e partiu para se vingar do herói. Macunaíma arrancou-lhe a cabeça e este membro de Capei tornou-se escravo dele sempre perseguindo-o, por fim resolveu subir ao céu e lá ficou morando para sempre.
        Ele perde o talismã nessa correria e o passarinho uirapuru conta-lhe que a pedra fora achada por um mariscador e vendida pra um regatão peruano chamado Venceslau Pietro Pietra, Piaimã, o gigante comedor de gente que andava com os calcanhares para frente, enriquecera e agora morava na cidade de São Paulo.
        "Então Macunaíma contou o paradeiro da muiraquitã e disse pros manos que estava disposto a ir em SP procurar esse tal Venceslau P. P. e retomar o tembetá roubado."

Cap.V - PIAIMÃ

        Macunaíma deixa a consciência na ilha de Marapatá, sobre um pé de caruru e ruma pra SP junto com seus manos através do rio Araguaia.
        Sem perceber tomou banho em uma água encantada e ficou branco, louro e de olhos azuizinhos, os irmãos também entraram na água, porém já suja do negrume do herói, Jiguê ficou vermelho e Maanape só molhou as palmas das mãos que ficaram mais claras. E seguiram levando uma parte do tesouro da icamiabas.
        Chegando em SP a comitiva de pássaros se despedem dele. Olhava pro céu, sentia saudade de Ci, mas conheceu a moças brancas (Mani! Mani! filhinhas da mandioca...") com quem "brincou" por quatrocentos bagarotes.
        Tudo para ele era estranho na cidade e foi aprendendo o nome das coisas ( bondes, automóveis, relógio, faróis, rádios, telefones, postes chaminés) as quais chamava de Máquina. Concluiu então que "os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens."
        Macunaíma saiu com Maanape em busca de Piaimã e da muiraquitã, mas o herói foi pego pelo gigante que o queria devorar. Maanape, ajudado por uma formiga sarará e um carrapato, conseguiu trazer o herói de volta à pensão e ressucitou-o com guaraná. Pensou em arranjar uma arma para matar o gigante e foi pedir aos ingleses.
        "Agora dou minha garrucha pra você e quando alguém bulir comigo você atira. Então virou Jiguê na máquina telefone, ligou pro gigante e xingou a mãe dele".

Cap.VI - A FRANCESA E O GIGANTE

        Tentando enganar o gigante, virou Jiguê em telefone e disse a Venceslau que uma francesa iria visitá-lo. Transformado em uma francesa linda foi para tentar negociar a muiraquitã, mas o gigante queria possuí-lo antes de entregar a pedra.
        Piaimã descobre que o herói está tentando enganá-lo e tenta pegá-lo; Macunaíma corre muito, atravessando vários Estados do Brasil e só se livra do gigante quando este tenta tirá-lo de um buraco e pega no "sim-sinhô" do herói arremessando-o longe.
        Descobriu que Venceslau era um colecionador célebre e ele não, ficou contrariado e resolveu que colecionaria palavrões.
        "Ai! Que preguiça!..."

Cap. VII - MACUMBA

        Para se livrar de Piaimã, ele resolve ir ao RJ, no terreiro da tia Ciata, pedir ajuda pro Exu diabo. O herói experimentou a cachaça e soltava gargalhadas escandalosas, por isso todos pensavam que o santo abaixaria nele naquela noite. De repente uma polaca pulou no meio da roda, era Exu que havia possuído a moça. Macunaíma ficou excitado de vê-la caída daquele jeito e correu brincar com ela no meio da roda. Pediu à entidade que judiasse muito de Piaimã e, através do corpo da polaca, Macunaíma ia fazendo as maldades para o gigante que quase morria de tanto sofrer...
        "E os macumbeiros, Macunaíma, Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira, Raul Bopp, Antônio Bento, todos esses macumbeiros saíram na madrugada".

Cap.VIII - VEI, A SOL

        Seguindo, Macunaíma topou com a árvore Volomã, cujos galhos estavam carregadinhos de variadas frutas; pediu uma e Volomã negou. Então o herói pronunciou algumas palavras mágicas e todas foram para o chão. Irada, Volomã atirou-o pelos pés em uma ilha deserta. Demorou tanto a cair que dormiu durante o percurso. Lá um urubu fez necessidade em sua cabeça e, po isso, ninguém se dispunha a trazê-lo de volta, pois estava fedendo muito.
        Vei, a Sol deu-lhe carona em sua jangada juntamente com suas três filhas, pois pretendia torná-lo seu genro. Mas para isso disse-lhe que não poderia brincar com nenhuma outra cunhã. Nem bem saíram para iluminar o dia, Macunaíma encontrou uma portuguesa com quem brincou demoradamente. Quando chegaram encontraram o herói dormindo com ela na jangada. Vei se zangou e não consentiu que o herói se casasse com nenhuma. À noite uma assombração comeu a portuguesa e o herói voltou para a pensão.
        "Pouca saúde e muita saúva, os males do brasil são!"

Cap. IX - CARTA PRAS ICAMIABAS

        Com um vocabulário erudito, escreve uma carta pras icamiabas, tentando relatar-lhes as aventuras pelas quais estavam passando ele e seu dois irmãos. Explica-lhes como os paulistanos as chamam, por amazonas, e como estes nunca ouviram falar da muiraquitã tão conhecida e respeitada entre as icamiabas. Sobre o dinheiro ,chama-o de "o curriculum vitae da civilização", para explicar que as mulheres cobram para brincar.
        Prolonga-se na tentativa de descrever o comportamento das mulheres paulistanas: como se vestem, como se casam. Fala dos prostíbulos, da política, vida pública em geral e, por fim, descreve a cidade de São Paulo sempre com um linguajar prolixo
        "Vazada num vernáculo pernosticamente castiço, com evidente intenção satírica, visando os puristas da belle époque e todos aqueles mais afeitos à dicção portuguesa."( Massud de Moisés - História da Literatura Brasileira).
        "Ora, sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra."


Cap.X - PAUÍ-PÓDOLE

        Enquanto aguardava uma chance de recuperar a muiraquitã, Macunaíma passeava pela cidade. Foi assim que encontrou uma cunhã vendendo flores e quando o herói passou por ela, esta colocou-lhe uma flor na botoeira da camisa, orifício que ele chamou de "puíto", segundo o narrador, um palavrão muito feio. Puíto pegou e virou moda.
        Depois de uma semana, resolveu ir ao parque ver os fogos. No caminho encontrou Fraülen ( personagem do livro Amar, verbo intransitivo) e foi com ela.
        Observando um mulato explicar sobre o dia do Cruzeiro, Macunaíma resolve desmenti-lo e contar sua versão: Pauí-Pódole era o pai do Mutum, um pássaro que fora perseguido por um feiticeiro que tentou matá-lo. Por isso Pauí resolveu morar no céu e pediu para que seu compadre vagalume alumiasse o caminho dele. Vários vagalumes o acompanharam e po isso esse caminho de estrelas pode ser explicado.

Cap. XI - A VELHA CEIUCI

        Sempre mentindo, Macunaíma convidou os manos pra caçar. Pegou dois ratos chamuscados no fogo, comeu-os e disse aos vizinhos que tinha matado dois viados catingueiros.
        Depois de desmentido pelos manos, ficou chateado e começou a ter lembranças do Mato e de Ci. Então ficaram juntos lembrando do passado.
        O herói fumou fava de paricá para ter sonhos gostosos. No outro dia causa uma grande confusão quando convence os manos a procurarem rasto de tapir na frente da bolsa de mercadorias, quase foi linchado e preso.
        Um dia resolveu pescar no igarapé Tietê e encontrou a velha Ceiuci, esposa de Piaimã. Ela capturou o herói e levou-o para casa. A filha mais nova da velha gostou de Macunaíma , "brincou" com ele e deixou-o fugir. A velha transformou a filha em um cometa e correu o Brasil inteiro atrás do herói. Ele pegou carona com um tuiuiu e voltou para a pensão.
        "A filha expulsa corre no céu, batendo perna de déu em déu."

Cap.XII - TEQUETEQUE, CUPINZÃO E A INJUSTIÇA DOS HOMENS.

        Piaimã viaja à Europa para descansar da sova e Macunaíma fica muito frustrado. O mano Jiguê tem a idéia de irem atrás do gigante, porém Maanape conclui que o melhor é que Macunaíma se finja de pianista e vá sozinho por conta do governo. Macunaíma prefere se passar por pintor, porém não consegue nada . Além disso, agora tinha perdido quarenta contos ao comprar de um tequeteque (mascate) um gambá que, supostamente, soltava moedas de prata quando fazia necessidades.
        Então resolveu que não ia à Europa e decidiu procurar uma panela com dinheiro enterrado, não achando convida os manos para jogarem no bicho.
        Numa praça, quando refletia sobre a injustiça dos homens, viu um tico-tico e um chupim, este chorava atrás do outro pedindo comida e o pássaro tentava sustentá-lo achando que fosse seu filhote, então Macunaíma matou o tico-tico para acabar com a injustiça. Mais adiante encontrou um macaco comendo coquinhos, o bicho disse ao herói que estava comendo seu próprios toaliquiçus (bolsa escrotal), deu um pouco para o herói que gostou muito e resolveu comer os dele também. Pegou um paralelepípedo e esmigalhou seus "toaliquiçus", morrendo de dor.
        Um advogado encontra Macunaíma morto e leva-o para a pensão, chegando lá, Maanape ressuscita o mano com guaraná; acorda, pede uma centena a Maanape e joga no bicho...
        "Maanape era feiticeiro".

Cap.XIII - A PIOLHENTA DO JIGUÊ

        Jiguê arrumou uma outra companheira de nome Susi, a qual em pouco tempo já estava namorando e "brincando" com Macunaíma. Quando ia à feira comprar macacheira, levava o herói junto e com ele brincava toda a tarde. Jiguê, desconfiado, deixa a companheira em casa e passa a fazer a feira sozinho, enquanto Susi fica em casa catando os piolhos da cabeleira vermelha que eram muitos. Desconsolado com a traição de Susi dentro de sua maloca, manda-a embora e ela sobe ao céu, trasnformada em uma estrela que pula.

Cap.XIV - MUIRAQUITÃ

        Fica sabendo através dos jornais que Piaimã voltou da Europa.
        Neste capítulo, o narrador explica por que existe o sono e o homem não pode dormir em pé.
        Andando, o herói vê uma casal brincando na beira da lagoa e aproxima-se pedindo um cigarro, o moço diz que não tem e Macunaíma resolve fumar o seu de palha que traz escondido. Esperando dar a hora de ir à casa do gigante ele conta uma história ao casal, explicando que o automóvel, antigamente, era uma Onça parda que perseguida por uma tigre preta resolveu colocar quatro rodas nos pés, tomar óleo de mamona, comer um motor morder dois vagalumes...Assim, transformando-se na máquina automóvel.
        "Dizem que mais tarde a onça pariu uma ninhada enorme. Teve filhos e filhas. Por isso que a gente fala "um forde" e "uma chevrolé".
        Depois da prosa, o gigante chegou . Observando os três parados perto de sua casa, convidou-os para entrar. Perguntou ao moço se queria balançar e o moço subiu no balanço do gigante, porém a velha Ceiuci estava preparando uma macarronada e esperava o sangue do moço para engrossar o caldo. Piaimã deu-lhe um empurrão e jogou-o na macarronada fervendo Agora queria pegar o herói, porém este se recusava a balançar, fez manha e convenceu o gigante a balançar primeiro. A velha preparou o panelão sem saber quem viria engrossar o caldo. De repente, Macunaíma deu um solavanco no gigante e empurrou-o dentro da macarronada da velha Ceiuci
        Então Macunaíma matou o gigante comedor de gente e recuperou sua muiraquitã.
        
"Num esforço gigantesco inda se ergueu do fundo do tacho. Afastou os macarrões que corriam na cara dele, revirou os olhos pro alto, lambeu a bigodeira:
        - Falta queijo! Exclamou...
        E faleceu."


Cap. XV - A PACUERA DO OIBÊ

        Recuperado o talismã, resolvem voltar para a selva. Na despedida repete pela última vez a sua definição sobre o país: "Pouca saúde e muita saúva,os males do Brasil são..."
        Levou com ele um revólver e um relógio que pendurou nas orelhas, um galo e uma galinha Legorne e a muiraquitã pendurada no beiço.
        Na volta, pelo Araguaia, pegou a violinha e cantou cantigas tristes e sem sentido, enquanto ia sendo acompanhado pela comitiva de pássaros que o protegia de Sol. Lembrava da donas de pele alvinha e sentia saudades de SP. Perto do mato pegou Iriqui e procurou um lugar para passar a noite.
        Em um rancho, encontrou o monstro Oibê que estava fazendo uma pacuera . Disse que estava com fome e o monstro deu-lhe cará com farinha, água e arrumou um lugar para o herói dormir. Macunaíma roubou a pacuera de Oibê e comeu-a .Perseguido pelo monstro, vomita tudo para se livrar.
        Na correria encontrou uma princesa, brinca com ela e abandona Iriqui que fica desconsolada, por isso resolve subir ao céu. "E o Setestrelo".


Cap. XVI - URARICOERA

        Foram chegando perto do Uraricoera e Macunaíma já começa a reconhecer o lugar, porém muita coisa havia mudado e o herói chorou. No outro dia, enquanto todos se ocupavam com algum serviço, Macunaíma deu uma chegadinha até a boca do Rio Negro para buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá; não achando, pegou a de um hispano-americano.
        Jiguê encontra uma cabaça encantada que pertence ao feiticeiro Tzaló que tem ma perna só e, com ela, consegue pescar muitos peixes, mas Macunaíma, roubando a cabaça encantada perde-a no rio e Jiguê fica furioso e deixa todos com fome. Para se vingar do mano, Macunaíma transforma uma presa de sucuri em anzol e pede para que espete a mão de Jiguê. Machucado com o anzol, Jiguê tenta curar a ferida, mas esta transforma-se em uma lepra que devora todo o corpo de Jiguê, deixando apenas sua sombra. A princesa ficou com raiva do herói porque ultimamente andava brincando com Jiguê e ordenou que a sombra envenenada destruísse Macunaíma; assim a sombra virou uma bananeira carregadinha e o herói, faminto, devorou as bananas, adquirindo a lepra. Estando moribundo resolveu passar a doença para sete povos. Veio a Saúde e livrou Macunaíma da morte.
        A sombra voltou e engoliu a princesa e o mano Maanape, mas não conseguiu pegar o herói. Correndo dela, Macunaíma passou por vários lugares do Brasil, até conseguir se livrar. Enfim, a sombra econtrou um boi, subiu nas costas dele e não deixava que o bicho comesse nada, assim o boi morreu e muitos urubus vieram fazendo a festa ( aqui o narrador explica a origem do bumba-meu-boi).
        
"A sombra teve raiva de estarem comendo o boi dela e pulou no ombro do urubu-ruxama. O pai do urubu ficou muito satisfeito e gritou:
        - Achei companhia pra minha cabeça, gente!
        E voou pra altura. Desde esse dia o urubu ruxama que é o Pai do Urubu possui duas cabeças. A sombra leprosa é a cabeça da esquerda."


Cap. XII - URSA MAIOR

        Sozinho agora e com muita preguiça, Macunaíma amarra a rede em dois cajueiros perto de uma pedra com dinheiro enterrado em baixo. "Que solidão!"
        O único que lhe fez companhia foi um aruaí (espécie de arara) muito falador, que aprendia, repetindo, todos os casos contados pelo herói, desde sua infância. E todos os dias a ave repetia o caso da véspera e Macunaíma punha-se a contar mais um.
        Depois de muitos dias na rede, comendo caju e contando casos ao papagaio, a Sol veio fazer cosquinhas no corpo do herói e a vontade de "brincar" reapareceu forte em Macunaíma, então resolveu tomar um banho frio no vale de Lágrimas para a vontade passar. Ao olhar para o fundo das águas viu uma cunhã lindíssima, era Uiara que, mandada pela Sol para atrair o herói e matá-lo, vinha dançando e piscando até que Macunaíma pulou no fundo das águas. Atacado pelas piranhas, perdeu a perna direita, os dedões, os "cocos da Bahia", o nariz, as orelhas e o beiço com a muiraquitã. Depois de muito procurar, encontrou tudo e colou de volta no lugar, menos a perna direita e a muiraquitã, pois foram engolidos pelo monstro Ururau. Sem um sentido agora para continuar vivendo, resolveu ser brilho inútil lá no céu, deixando escrito numa laje: "NÃO NASCI PARA SER PEDRA". No céu, Pauí-Pódole virou Macunaíma na constelação da Ursa Maior.
Bom estudo meus lindos, com carinho Prof Dr Master Reikiana
Aldry Suzuki bjs

LUIS FERNANDO VERÍSSIMO - ANALISTA DE BAGÉ / CANTINHO BRASILEIRO ALDRY SUZUKI









LUIS FERNANDO


ver!ssimo


TODAS AS HISTÓRIAS DO ANALISTA DE BAGÉ


Orelhas e contra-capa do livro




O analista de Bagé é um dos personagens mais marcantes na carreira de Veríssimo. Divertido, levemente alucinado e com um repertório particular de expressões regionais, o analista mais querido do país informa que já nasceu "mais atrapalhado do que cachorro em procissão". 

Era para ser garçom num restaurante francês, mas acabou num divã à moda dos pampas ― com muito chimarrão, pelego e espora. 

Nesta edição, revista e atualizada, o leitor vai se deliciar com as melhores histórias deste analista que se tornou um clássico do humor nacional.


Para quem quer conhecer mais de perto este "deflorador" da alma humana, o livro traz uma entrevista-bomba com o personagem ― dizem que foi a primeira e única que ele deu na vida antes de sumir no mundo. 

As notícias são desencontradas. Alguns dizem que ele morreu, outros que se aposentou. 

Veríssimo aposta que ele finalmente cedeu aos encantos da sua recepcionista: aquela que, além de receber, também dava.


            Saudades do tempo em que o analista atendia com hora marcada, endereço fixo — e prescrições nada ortodoxas. 

Complexo de Édipo, por exemplo, que dá mais do que pereba de criança, ele podia curar num gole de chimarrão. 

Para angústias existenciais, a infalível técnica do "joelhaço". 

Mania de perseguição, segundo ele, sempre foi pura frescura e, para frigidez feminina, a receita era infalível: um bom amasso com o analista e, de preferência, no aconchego do pelego.


Com seu humor cáustico, o analista trata os males da alma como quem amansa cavalo chucro, conquistando seus leitores no laço. 

Impossível resistir ao seu charme. "Se abanque, índio velho. 

A sessão está apenas começando", avisa o nosso analista de Bagé.




            Um dos personagens mais queridos do público. Um clássico do humor de Luis Fernando Veríssimo. Todas as Histórias do Analista de Bagé reúne os melhores momentos deste célebre psicanalista que trata seus pacientes aos joelhaços. Com suas tiradas geniais, seu jeito meio "rústico" de ser, o analista de Bagé ultrapassou as fronteiras do Rio Grande do Sul e conquistou o Brasil. Engraçado, irreverente, sem papas na língua, o analista acabou criando fama. "Sou mais comentado do que vida de manicure", afirma. Neste livro, o leitor vai se divertir com as aventuras deste destemido, amoroso e alucinado psicanalista de fronteira.




!








Luis Fernando Veríssimo é natural de Porto Alegre de onde, ainda hoje, observa a vida brasileira com seu olhar curioso, sensível ― e sempre bem-humorado. Como todo bom gaúcho, não poderia deixar suas raízes de lado. Ao resgatar um humor tipicamente regional, Veríssimo criou sucessos que ultrapassaram a fronteira do tempo e tornaram-se inesquecíveis, como o Analista de Bagé e a Velhinha de Taubaté.


            Em décadas de jornalismo diário, Veríssimo se consagrou como um dos colunistas mais respeitados do país, já tendo recebido a Medalha de Resistência Chico Mendes e o Prêmio de Intelectual do Ano em 1997. É autor de clássicos do humor nacional, como O Clube dos Anjos e Comédias da Vida Privada.


            Todos os livros do autor estão sendo relançados pela editora Objetiva, em edições ampliadas, atualizadas e revistas. A série Verissimo inclui também novos títulos, como os recentes Mentiras que os Homens Contam e Comédias para se Ler na Escola.




Onde anda o analista de Bagé? Não sei. As notícias são desencontradas. Há quem diga que ele se aposentou, hoje vive nas suas terras perto de Bagé e se dedica a cuidar de bicho em vez de gente, só abrindo exceção para eventuais casos de angústia existencial ou regressão traumática de fundo psicossomático entre a peonada da estância.


Lindaura, a recepcionista que além de receber também dava, estaria com ele, e teria concordado em dividir o afeto do analista com uma égua chamada Posuda, desde que eles concordassem em nunca serem vistos juntos em público.


Outros dizem que o analista morreu, depois de tentar, inutilmente, convencer o marido de uma paciente que banhos regulares de jacuzzi a dois num motel faziam parte do tratamento.


E há os que sustentam que o analista continua clinicando, na Europa , onde a sua terapia do joelhaço, conhecida como “Thérapie du genou aux boules, ou le methode gaúchô”, tem grande aceitação e ele só tem alguma dificuldade com a correta tradução de “Pos se apeie nos pelego e respire fundo no más, índio velho”, no começo de cada sessão. Não sei.







Bagé




Certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que, por alguma razão, possuem. Algumas das pessoas mais sensíveis e menos grossas que eu conheço vêm de Bagé, assim como algumas das menos afetadas são de Pelotas.


Mas não adianta. Estas histórias do psicanalista de Bagé são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem-educada), mas, pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar.


Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um pelego. Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.


― Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho.


― O senhor quer que eu deite logo no divã?


― Bom, se o amigo quiser dançar uma marca antes, esteja a gosto. Mas eu prefiro ver o vivente estendido e charlando que nem china da fronteira, pra não perder tempo nem dinheiro.


― Certo, certo. Eu...


― Aceita um mate?


― Um quê? Ah, não. Obrigado.


― Pos desembucha.


― Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano?


― Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope.


― Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe.


― Outro...


― Outro?


― Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.


― E o senhor acha...


― Eu acho uma poca vergonha.


― Mas...


― Vai te metê na zona e deixa a velha em paz, tchê!




Contam que outra vez um casal pediu para consultar, juntos, o analista de Bagé.


Ele, a princípio, não achou muito ortodoxo.


― Quem gosta de aglomeramento é mosca em bicheira...


Mas acabou concordando.


― Se abanquem, se abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê. Qual é o causo?


― Bem ― disse o homem ―,é que nós tivemos um desentendimento...


― Mas tu também é um bagual. Tu não sabe que em mulher e cavalo novo não se mete a espora?


― Eu não meti a espora. Não é, meu bem?


― Não fala comigo!


― Mas essa alta mais nervosa que gato em dia de faxina.


― Ela tem um problema de carência afetiva...


― Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho, carência afetiva é falta de homem.


― Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacionamento porque ela tem procurado experiências extra-conjugais e...


― Epa. Opa. Quer dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista? Tão folgada que qualquer um bota a mão?


― Nós somos pessoas modernas. Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende?


― Ela ta procurando o verdadeiro tu nos outros?


― O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela.


― Mas isto ta ficando mais enrolado que lingüiça de venda. Te deita no pelego.


― Eu?


― Ela. Tu espera na salinha.






Finitude




Existem muitas histórias sobre o analista de Bagé, mas não sei se todas são verdadeiras. Seus métodos são certamente pouco ortodoxos, embora ele mesmo se descreva como “freudiano barbaridade”. E parece que dão certo, pois sua clientela aumenta. Foi ele que desenvolveu a terapia do joelhaço.


Diz que quando recebe um paciente novo no seu consultório a primeira coisa que o analista de Bagé faz é lhe dar um joelhaço. Em paciente homem, claro, pois em mulher, segundo ele, “só se bate pra descarrega energia”. Depois do joelhaço o paciente é levado, dobrado ao meio, para o divã coberto com um pelego.


― Te abanca, índio velho, que tá incluído no preço.


― Ai ― diz o paciente.


― Toma um mate?


― Nã-não... ― geme o paciente.


― Respira fundo, tchê. Enche o bucho que passa.


O paciente respira fundo. O analista de Bagé pergunta:


― Agora, qual é o causo?


― É depressão, doutor.


O analista de Bagé tira uma palha de trás da orelha e começa a enrolar um cigarro.


― Tô te ouvindo ― diz.


― É uma coisa existencial, entende?


― Continua, no más.


― Começo a pensar, assim, na fìnitude humana em contraste com o infinito cósmico...


― Mas tu é mais complicado que receita de creme Assis Brasil.


― E então tenho consciência do vazio da existência, da desesperança inerente à condição humana. E isso me angustia.


― Pos vamos dar um jeito nisso agorita ― diz o analista de Bagé, com uma baforada.


― O senhor vai curar a minha angústia?


― Não, vou mudar o mundo. Cortar o mal pela mandioca.


― Mudar o mundo?


― Dou uns telefonemas aí e mudo a condição humana.


― Mas... Isso é impossível!


― Ainda bem que tu reconhece, animal!


― Entendi. O senhor quer dizer que é bobagem se angustiar com o inevitável.


― Bobagem é espirrá na farofa. Isso é burrice e da gorda.


― Mas acontece que eu me angustio. Me dá um aperto na garganta...


― Escuta aqui, tchê. Tu te alimenta bem?


― Me alimento.


― Tem casa com galpão?


― Bem... Apartamento.


― Não é veado?


― Não.


― Tá com os carnê em dia?


― Estou.


― Então, ó bagual. Te preocupa com a defesa do Guarani e larga o infinito.


― O Freud não me diria isso.


― O que o Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão?


― Não.


― Então te fecha. E olha os pés no meu pelego.


― Só sei que estou deprimido e isso é terrível. É pior do que tudo.


Aí o analista de Bagé chega a sua cadeira para perto do divã e pergunta :


― É pior que joelhaço?






Megalomania




Contam que Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé (segundo ele, “mais eficiente que purgante de maná e japonês na roça”), desenvolveu um método para separar os casos graves dos que são só ― como diz o analista de Bagé ― “loucos de faceiros”. Enquanto preenche a ficha, ela dá a cada paciente em potencial uma cuia de chimarrão no formato de um seio. Depois vai anotando: “Quis chupar a cuia em vez da bomba”, “Começou a gemer e acariciar a cuia”, “Atirou contra a parede”, etc. Assim, quando recebe o paciente, o analista de Bagé já sabe o que esperar. Mas nada preparou o analista de Bagé para a entrada no seu consultório do megalômano de Carazinho.


O diálogo entre os dois já começou mal.


― Te deita no divã.


― Não deito.


― Te deita, bagual!


― Não deito!


― E por que não deita?


― Em primeiro lugar, porque só quem mandava em mim era o meu pai, que já está no Grande Galpão do céu capando anjo pra fazer lingüiça. Em segundo lugar, que o analista aqui sou eu.


E com isto o analista de Bagé derrubou o outro com um peitaço e o segurou sobre o pelego do divã com um joelho na omoplata. Gritou:


― Diz qual é teu problema!


― Não digo pra qualquer um!


― Diz senão te arranco esses bigodes dois a dois.


― Todos dizem que eu tenho mania de ser melhor do que os outros, mas eu não acredito neles.


― E por que não?


― Porque é tudo gente inferior.


O analista de Bagé saiu de cima do outro, mas deixou o facão bem à vista, para evitar incomodação. O outro continuou.


― Eu tenho megalomania.


― Não tem ― disse o analista de Bagé, brabo. Sabia que era verdade, mas não agüentava fanfarrão.


― Quer saber mais do que eu?


― Sei mais do que tu, teu irmão, tua mãe e teu pai, se fosse conhecido.


Nisso o megalômano de Carazinho subiu em cima do divã, apontou um dedo para o analista de Bagé e ameaçou:


― Olha que eu te transformo em pedra.


O analista de Bagé abriu a camisa e ofereceu o peito:


― Pois transforma. Quero ver. Transforma!


O outro mudou de tática. Ergueu a mão como numa bênção e disse:


― Eu te perdôo.


Aí o analista de Bagé avançou.


Na sala de espera Lindaura esperou meia hora antes de entrar no consultório.


Tinha ordens do analista de Bagé sobre como agir de acordo com os sons que ouvia. “Resfolego, não liga. Gemido, vai pra casa. Grito, te prepara. Mobília quebrada, entra.” Decidiu entrar. Encontrou o megalômano de Carazinho inconsciente embaixo do divã virado, com só metade do bigode. Depois o analista de Bagé explicou:


― Doença é uma coisa. Convencimento é outra.


O outro era “metido a grancosa”. Mas ele perdera mesmo a paciência quando ouvira o outro dizer:


― Sou o maior megalômano do mundo!


Aparecia cada um.








Duplo




Contam que os métodos pouco ortodoxos do analista de Bagé (embora ele diga que é “mais ortodoxo que caixa de maizena”) têm levado uma multidão de pacientes a procurá-lo. Ele foi obrigado a fazer uma triagem na sua clientela.


Instruiu sua recepcionista Lindaura (“uma chinoca que eu estava criando, mas passou do ponto”) a cortar os complexos menores, inclusive todos os de inferioridade e “os Édipos de ambulatório”. Só aceita casos difíceis, pois, como diz, “cavalo manso é pra ir à missa”. Foi o caso daquele estancieiro rico que já entrou dizendo:


― Meu caso é de esquizofrenia, doutor.


― Oigalê! Já vi que o índio velho é dos que lê bula. Essa palavra eu só aprendi a dizer dois dias antes da formatura. Mas se abanque, no más.


O estancieiro se deitou no divã coberto com um pelego. O analista começou a limpar as unhas do pé com um facão. Falou:


― Quer dizer que o amigo está com esquizofrenia.


― É.


― Da braba?


― Da braba.


― Como se manifesta a bicha?


― Personalidade dupla, doutor. Um dia eu sou um, no outro eu sou outro.


― Sei.


― Um dia sou alegre, bonachão, mão aberta. No outro sou carrancudo, brigão e não abro a mão nem pra espantar mosca.


― Mas que coisa.


― Eu tenho cura, doutor?


― Bueno. Vai ser um tratamento mais comprido que bombacha de gringo.


― Tudo bem.


― Mais caro que argentina nova na zona.


― Não me importo.


― Já vi que o amigo está nos seus dias de cordeirito.


― Lindaura!


― Chamou?


― Prepara a conta que o índio velho aqui vai pagar adiantado.


O estancieiro começou a se levantar para protestar, mas o analista de Bagé o mandou de volta ao pelego com um cabeçaço. E avisou:


― Se conta pro outro, te capo.





Te cuida, tchê




Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé (segundo ele, “uma recepcionista eclética, pois recebe e dá”), faz o possível para preveni-lo sobre os pacientes novos antes de entrarem no consultório, pois, como diz o analista, “se me entra um arreganhado, já recebo a tapa”.


Lindaura deixa um pedacinho de veludo vermelho ao alcance do paciente na sala de espera. Depois escreve na sua ficha: “Não ligou para o veludo” ou “Passou a mão e começou a babar” ou “Botou na frente e foi ver no espelho se ficava bem”. Na ficha daquele cliente novo, de Não-me-toque, ela escrevera: “Viu o pedacinho de veludo e recuou horrorizado.” Era obviamente um paranóico.


― Te deita no divã, tchê ― disse o analista de Bagé.


― Pra quê? ― quis saber o paciente, desconfiado.


― Oigalê bicho bem xucro ― disse o analista com uma risada agradável, enquanto torcia o braço do outro e obrigava-o a se deitar.


O paciente ficou se segurando sobre o pelego que cobria o divã, para evitar que arrancassem sua roupa. O analista sentou no seu banquinho e pegou a cuia. Ofereceu:


― Um mate?


― O que é que você quer dizer com isso?


O analista de Bagé passou a cuia para o outro, que olhou para a ponta da bomba com apreensão.


― Pode tomar que os micróbios são de casa ― disse o analista, mas o paciente devolveu a cuia. O analista continuou:


― Pues, qual é o problema?


― Eu sabia. Já andaram espalhando que eu tenho problema.


― Se o amigo está aqui é porque tem um problema. Já vi que pelo mate não é.


― Pare com esse tom condescendente!


O analista de Bagé fez força para se controlar. Um dia antes perdera a paciência e atirara um masoquista contra a parede. O masoquista não reclamara, mas com o impacto se quebrara o seu Freud entalhado em imbuia. O outro continuou:


― Todo mundo me persegue.


― Não é verdade.


― Ninguém acredita em mim.


― Eu acredito.


― Você só diz isso pra me agradar.


― Eu não estou querendo te agradar.


― Por que não? Por que não?


Meia hora depois o analista de Bagé, com argumentos razoáveis, e com a ameaça de atirar a escarradeira na sua cabeça, convencera o paciente a abandonar sua mania de perseguição. Ninguém o estava perseguindo. Era pura fantasia.


― E o jacaré embaixo da cama?


― Não tem jacaré. Jacaré gosta de banhado. A tua cama fica em lugar seco?


― Fica.


― Pois então.


Ele devia sair dali convencido que ninguém nem nada estava contra ele. Devia se esforçar para levar uma vida normal.


― Não sei se vou conseguir...


― Vai.


― Como é que você sabe?


― Porque eu vou estar sempre atrás de ti, tchê . Te cuidando. De dia e de noite. A menor recaída na paranóia, ó...


E o analista de Bagé fez o gesto de quem acerta um cutelaço na nuca.





Salinha cheia




― Se abanque, no más ― disse o analista de Bagé, indicando o divã.


― Eu, ahn, prefiro ficar de pé ― disse o moço.


― Se abanque, índio velho, que tá incluído no preço.


― Não, obrigado...


― Deita aí! ― disse o analista de Bagé, empurrando o paciente, que caiu de costas no pelego.


O analista de Bagé sentou na sua banqueta e começou a picar fumo para o palheiro. Como o moço não dissesse nada, falou:


― E então? Desembucha.


― É que eu tenho um probleminha...


― Probleminha só pode ser o moleque pequeno.


― “Moleque?”


― A peça. O trabuco. O Oduvaldo.


― Ah. Não, não é isso.


― Então o que é, tchê? Depressa que eu to com a salinha cheia de louco.


― Bem, é que eu...


― O quê?


― Eu desde pequeno tenho este problema de incontinência...


― Incontinência?


― Eu ainda faço xixi na cama...


Nisso o analista pulou e gritou:


― Meu pelego!


E levantou o divã por uma ponta, despejando o paciente no chão.


Outra vez entrou um senhor no consultório, deitou no divã e contou que ultimamente estava se comportando de modo estranho.


― Me aposentei, doutor. E um dia, não sei por quê, me deu vontade de pintar o cabelo de caju.


― Sei ― disse o analista de Bagé, sem tirar a bomba de chimarrão da boca.


― Comecei a usar roupas assim. Camisa aberta até aqui embaixo...


― Tô ouvindo.


― Medalhão no peito...


― Pensei que fosse devoção.


― E me deu esta vontade de só andar com rapazes...


― Sim.


― Me diga, doutor. Eu sou homossexual?


― Não existe gaúcho homossexual.


― Mas a gente vê tantos por aí...


― São as correntes migratórias. Tu não tem nada, índio velho. Precisa é arranjar um passatempo. Colecionar selo. Ou medalhão, pra não perder os que já tem. Vai pra casa e sossega, tchê!


― Se eu fosse homossexual, nem sei o que fazia. Acho que me jogava por essa janela!


Aí o analista de Bagé tapou a janela com o corpo e ameaçou:


― Te fresqueia. Te fresqueia!





Entrevista com o analista de bagé




O Coojornal foi o jornal da Cooperativa dos Jornalistas do Rio Grande do Sul com sede em Porto Alegre, que funcionou do final dos anos 7O até meados dos anos 8O.




Coojornal ― Qual é a sua escola? Segue os ensinamentos de Freud, Jung, Reich ou Honório Lemes?


Analista de Bagé ― Pues, sou freudiano de carregar bandeirinha. Mas não desprezo os demás. No meu consultório tenho uma guampa esculpida com as caras de Adler e Jung. A Dona Melanie Klein também, era china de se apresentar pra mãe. Coisa mui especial. Já esse tal de Reich, nem pra tatá bosta. Reich, pra mim, é prenúncio de cuspida.


Coojornal ― Qual a importância do barranco na formação do psiquismo do gaúcho?


AB ― É importante barbaridade. Lá na fronteira se diz que nem toda mulher é vaca, mas toda vaca é mulher. Quando me vem paciente com histórias que o stress não deixa ele trepar, ou a mulher é dominadora ou ele acha sexo mais nojento que mocotó de ontem, eu diagnostico na paleta: “Esse não barranqueou.” Não há coisa mais linda que uma barranqueada a céu aberto.


Desenvolve o membro e o amor à natureza. E se o vivente me diz que na terra dele não tinha barranco, repico em cima: “E, não tinha formigueiro?” Não tem desculpa. Quando eu era guri, ia pro campo de banquinho.


Coojornal ― Se um paciente sonha freqüentemente que está correndo nu, com guirlandas de flores nos cabelos, as faces rosadas e um relató rio da Farsul debaixo do braço, qual é a terapia indicada?


AB ― O sonho é fácil de interpretar. O índio velho obviamente se identifica com as classes produtoras gaúchas, que não param de leva. Enquanto for só sonho, está especial. No dia em que ele me aparecer assim no consultório, dou-lhe um tranco de virá cadeira.


Coojornal ― Ouve-se dizer que o senhor não cobra suas consultas em dinheiro. Prefere uma porquita no esplendor da adolescência, uma ovelhita buena de retoço ou até mesmo uma galinhazita experimentada. É verdade?


AB ― Já vi que o amigo tem vocação de fresteiro, pos tá babando no meu tapete malhado. Já se viu? Recebo pagamento em espécie, inclusive animal. Mas não costumo me envolver emocionalmente com meus honorários. É verdade que uma ocasião um latifundiário esquizofrênico de Dom Pedrito ― era metade PB, metade PSDB e ainda tinha uma partezita PDT que atiçava as outras duas ― me pagou a consulta com uma égua castanha buenacha. Cosa pra não fazer feio em exposição ou no Motel Ipanema. Quase não resisti, mas finalmente me segurei nas bombachas. Mesmo porque a Hortênsia não compreenderia.


Coojornal ― A Hortênsia é a sua senhora?


AB ― Não. A Hortênsia é uma pata que mora comigo. Mais ciumenta que mulher de tenente.


Coojornal ― Qual sua reação diante de uma paciente que chega cuspindo fumo nos seus pelegos, calçando 44 bico chato e dizendo que está disputando posição na zaga central do Guarani?


AB ― Desabotoo as braguetas e boto o Careca pra fora. Se ela quer competição, então vamos ao que interessa, tchê.


Coojornal ― O senhor também vai para a cama, digo, para os pelegos, com suas pacientes?


AB ― Se o caso da moça me parece ser simplesmente falta de bageense, vou. Mas também depende da china. Se apetece, se tomou banho e outros etecéteras, pós fiz o juramento de Hipócrates mas não sou hipócrita. E tem otra cosa. Como os amigos sabem, hora de psicanalista tem 50 minutos e 50 minutos nem sempre é o bastante para se chegar ao fundo da questão. Gaúcho com ejaculação precoce é o que leva meia hora. E eu gosto de fazer tudo como manda o almanaque. Tiro até as ceroulas. Quem trepa vestido é padre e tartaruga.


Coojornal ― É verdade que o analista-didata que o preparou foi o Paixão Cortes?


AB ― Não. O Paixão não é analista e nem poderia ser. É um índio mui grosso. Este é negócio pra gente sensível. Empurra essa escarradeira pra cá que ta me subindo um daqueles de assustar buldogue. Reich! Slupt! Obrigado.


Coojornal ― Qual sua explicação para o veadismo que campeia no Rio Grande?


AB ― Não quero falar mal, mas tem entrado muito uruguaio ultimamente... E é preciso entender que gaúcho marica sempre houve. Tem gaúcho aí sem bigode e de costeleta curta como estribo de anão que nem por isso é veado. Se bem que tá ALI. Marica é marica. Nem todo mundo corta unha com facão. Agora, esse negócio de homossexualismo é frescura. Uma vez um índio velho que eu tava analisando disse que tinha se apaixonado por mim. A tal de transferência. O Freud disse que devia se deixar sempre um revólver carregado à mão para os casos extremos. E o índio velho era macho de três culhões, tchê. Seu perfume era francês: o Chirac depois do cuper. Disse que estava apaixonado por mim.

Eu disse “Não tá”. Ele disse “Tou”. Eu disse “Te fecha”. Ele disse “Mas é verdade”. Eu disse “Quer parar de falar e prestar atenção na música? Tu ta pisando nos meus pés”. Mas um mês depois tava curado. E verdade que insistiu em ficar com três cabelos do meu peito para guardar num livro do Vinícius. Mas hoje ta emprenhando até china de delegado. Não existe gaúcho homossexual. Existe bageense que não deu certo.


Coojornal ― Dizem que a bomba de chimarrão é um tal de símbolo fálico.


AB ― Símbolo fálico é o cacete.


Coojornal ― O senhor já descobriu a porção mulher do gaúcho?


AB ― Já. Ela se chama Noemi. Todo gaúcho tem ego, superego, id e Noemi. Eu apresentei essa tese num congresso no México e fui vaiado, mas sustento.


Inclusive, através da análise, já penetrei no inconsciente de muito guasca grosso e fiz contato com a Noemi. Uma vez, com o hipnotismo ― fico balançando um rabo de terneiro na frente do paciente e dizendo “Dorme, filho-da-mãe!” ―, consegui salvar um guasca do Alegrete que estava quase se perdendo. O causo era que a Noemi queria ir morar no Baixo Leblon e ir a verníssage de sandália, e o vivente queria ficar na fazenda curando bicheira. Dei uns trancaço na Noemi dele e ela se aquietou.


Nenhum gaúcho sai do Rio Grande do Sul por vontade própria. É sempre a Noemi que emigra e leva o pobre junto.


Coojornal― O senhor fez seu curso em Paris, Viena, Nova Iorque ou Passo Fundo?


AB ― Em Paris, Viena e Nova Iorque, com especialização em Passo Fundo.


Coojornal ― Antes, quem tinha lenço branco no pescoço ia prum lado e os de encarnado pro outro, mas agora a gauchada tá praticando a tal de amizade colorida. Que mudança foi essa?


AB ― Coisas da Noemi.


Coojornal ― Por falar no assunto, o senhor é maragato ou chimango?


AB ― Maragato, Guarani, Internacional, Ioland a Pereira, João XXIII, sal grosso em vez de salmoura, tango, mulher ancuda, pinga ardida, fumo de rama, filme de pirata e não sei cagá sem ler o Correio.


Coojornal ― E o tal de feminismo, que tal lhe parece?


AB― Pos sou a favor. Acho que toda mulher deve lutar pela sua igualdade, desde que não interfira com o serviço da casa. Depois de pendurar as roupas ela pode fazer o que bem entender.


Coojornal ― Falam da existência de uma nova mulher, uma nova moral, o tal de “novo pacto afetivo”. O que é que o senhor acha?


AB ― Uma vez veio um casal me consultar e trouxeram uma amiga junto. A moça era que nem casa de esquina, dava pros dois lado. Já fiquei aqui, massageando meu fumo e cuidando a trinca. Os três se acomodaram no divã e empeçaram a charlar. Bandalheira vai, bandalheira vem, descobri que estavam com um problema. A tal de avulsa conhecera um sargento da brigada, Salustiano, vulgo Barril, e queria levar o bicho pra morar com os três porque ele era autêntico, entende? Os outros ficaram com ciúmes, mas logo se deram conta que ciúmes era uma recaída burguesa e careta e estavam confusos. O que é que eu achava? Virei o divã com um pontapé e corri com os três a tapa. Sou a favor de uma nova moral, mas poca vergonha, não!


Coojornal ― E a tal de maconha? O senhor aprova a sua liberação?


AB ― Aprovo, porque não hay como controlar. Ouvi falar que tem gente alimentando boi com cogumelo alucinógeno e depois fumando a bosta seca. É como dizem na minha terra; pra besteira e financiamento do Banco do Brasil, sempre se arranja um jeito.


Coojornal ― Já se sabe que existe uma revolução de costumes. Ela só atinge a classe média ou o proletariado também entrou nesse reboliço?


AB ― Pela minha clientela do INPS, posso dizer que a peonada também foi atingida nos seus costumes. O costume de comer, por exemplo.


Coojornal ― E a técnica do joelhaço, como foi descoberta?


AB ― Aprendi com um médico dos meus tempos de piá. Quando a gente dizia que tava com dor de ouvido, ele dava um beliscão no braço até a gente gritar; “Tô com saudade da dor de ouvido.” Também apresentei a tese do joelhaço num congresso de psiquiatria. Os bundinhas quase desmaiaram. Sou um pioneiro na sua aplicação na psicanálise.


Coojornal ― O Império dos Sentidos bateu todos os recordes de permanência em cartaz aqui em Porto Alegre. Será que a gauchada já perdeu a vergonha?


AB ― Fui ver O Império dos Sentidos. Sentou uma piguancha do meu lado e no meio do filme nós estávamos num roçado lindo no más. Na saída eu perguntei se ela não queria continuar o filme lá em casa. Ela disse: “Querer eu quero, mas onde é que a gente vai conseguir os japonês?”


Coojornal ― Como o senhor explica o fato do seu conterrâneo Milito, mais conhecido como general Garrastazu Médici, não tê-lo convidado para suas bodas de ouro?


AB ― Não me importei. Nossas famílias não se davam. Quando anunciaram que um filho de Bagé era o mais novo presidente da Revolução, meu pai observou: “Bem feito, quem mandou sair daqui?”


Coojornal ― E a tal história de poder e sexo? Dizem que quem tem o primeiro não faz o segundo. Qual é a sua opinião?


AB ― Pelo contrário, tchê. O poder é estimulante. Quem ta no governo tem sempre tesão de seminarista. Só muda o objeto da paixão do homem. Em vez da mulher dele, é a nossa paciência.


Coojornal ― Qual a sua opinião sobre Fernando Gabeira?


AB ― O Fernando Gabeira me lembra um causo. Lá em Bagé tinha um bolicho chamado Bago’s. Era onde a indiada se reunia pra coçar o saco, tomar cana com pólvora e contar história de pelotense. Se passasse homem bem barbeado pela porta, lá vinham os a ssobios e os gritos de “Aí, Rosinha” ou “Tá passando o Bambi”. Mas volta e meia aparecia um moço no bolicho. Bota de salto alto, cabelo mechado, brincos e passinho de quem não quer peidá. Entrava, ia até o balcão e tomava uma Fanta uva com o dedinho levantado. E a indiada quieta.


Aí o moço rodopiava e saía. E, se alguém estranhasse aquele respeito com o veado, ouvia logo a explicação: para entrar ali daquele jeito, o cara tinha que ser macho. Muito macho.


Coojornal ― Uma pergunta de analista: como foi a sua infância?


AB ― Uma infância normal do interior. O que eu não aprendi dentro do galpão, aprendi atrás do galpão.


Coojornal ― O senhor já sentiu um bafo quente na nuca? Como reagiu?


AB ― Já senti, sim. O bafo da tua mãe, que errou de lado. Tu só não leva um joelhaço porque é da imprensa nanica e eu não sou prevalecido.


Coojornal ― Calma, calma. Qual a influência da bombacha no machismo gaúcho?


AB ― A maior ameaça aos machos do Rio Grande, de bageense até marchand de tableau, são esses tais de gins. O gaúcho é o que é porque a bombacha dava espaço. Uso bombacha até no consultório. Quando a ocasião é social uso as de enfeite do lado. Mas nada que brilhe, senão já é bichice. Pra apertar meus fundilhos, só mão de china.


Coojornal ― E agora a última pergunta: o que a Sociedade Psicanalítica de Bagé vai achar desta entrevista?


AB ― A Sociedade Psicanalítica de Bagé se reúne semanalmente no CTG Rincão da Sublimação Consciente, o único lugar do estado em que mancha de gordura na toalha de papel é interpretada na hora. Eles me consideram uma rês desgarrada porque sou muito radical. Só não me expulsaram ainda porque querem me capar antes.







Honra




O analista de Bagé se declara “freudiano de cola decalco” e “mais ortodoxo que Caximir Buquê”, mas isto não o impede de experimentar com novas formas de terapia. Como no caso da mulher do compadre Salustiano.


Contam que um dia o compadre Salustiano entrou no consultório, segundo o analista de Bagé, como mata-mosquito em convento. Causando alvoroço. Eles há tempo não se viam.


― Guasca velho!


― Cachorrão!


― Índio bem loco!


― Seu bosta!


― Animal!


― Desgraçado!


E se atiraram um nos braços do outro, com tanta força que a Lindaura veio ver se não tinha móvel quebrado. Depois o analista de Bagé mandou o amigo se deitar no divã e desembuchar, que era de graça. O Salustiano reagiu.


― Epa. Tá me estranhando, compadre? O problema é com a Rosa Flor.


― O que tem?


― A Rosa Flor quer ir pro Rio.


― Ir embora do Rio Grande? Mas enloqueceu.


― Pos é. Diz que não agüenta mais vê campo. Quer ver o mar.


― Mas ela não sabe que mar é igual a campo, com a desvantagem que afunda?


― Sabe, mas não adianta. Aquela , quando decide ir pra um lugar, é como cachorro de cego. Só matando.


― Escuta aqui, tchê. Tu deste um trancaço nela?


― Dei trancaço, dei laço, cheguei até a pedi. Foi como mijá em incêndio.


― Cosa, seu. Tu sabe que mulher que vai pro Rio já desce na rodoviária falada.


― E não sei?


― Me manda ela aqui.


A Rosa Flor, a princípio, não quis dizer nada. Ia para o Rio e pronto. O analista de Bagé abriu um volume do Freud para consulta. Era ali que guardava, numa folha de caderno de armazém, escritas a toco de lápis, as máximas do velho Adão, seu pai. Encontrou um precedente: “Pra amarrar cavalo no campo e mulher em casa, só carece de um pau firme”. Deitada no pelego, a Rosa Flor confirmou com a cabeça quando o analista perguntou, sutilmente, se o compadre não passava mais a lingüiça na farinheira. Era verdade.


O analista botou uma mão na cabeça. Aquilo era a pior coisa que pode acontecer com um gaúcho, fora cair do cavalo ou a filha casar com nordestino.


Com a outra mão, começou a desabotoar a braguilha. Fazia qualquer coisa por um amigo.


Ficou combinado que a Rosa Flor teria sessões duas vezes por semana e desistiria daquela história de ir para o Rio, o compadre Salustiano podia ficar descansado. A honra da Rosa Flor estava salva.


Argumento O analista de Bagé sustenta que não existe gaúcho homossexual, embora, como diz, “quem não nasceu em Bagé tá se arriscando”. O que existe, segundo o analista, “é quem não sabe se vai ou não vai, como cavalo xucro pra cruzsanga”.


Estes precisam de um “empurrãozito, no más”, na direção certa. Foi o caso do compadre Clarindo.


Pois contam que quando o analista de Bagé estava recém-formado foi chamado para atender um paciente numa estância. Como era freudiano de dormir com o regulamento, sugeriu que levassem o vivente ao seu consultório. Mas neste caso ― disse o peão que levou o recado ― não seria possível. O paciente não podia saber que ia ser atendido.


Na charrete para a estância, o peão deu mais algumas informações sobre o caso.


― É o compadre Clarindo...


― O que tem?


― Pues não é que deu pra se vestir de prenda?


Na estância, o analista de Bagé foi apresentado pros de casa e pros de perto, seis homens e cinco gurias, e depois perguntou:


― E o compadre Clarindo?


― Tu acaba de cumprimentar...


Era uma das gurias. O analista de Bagé bem que tinha estranhado os bigodes.


Foi conversar com o dono da estância e o capataz. Os dois elogiaram muito o compadre Clarindo, índio louco de especial, gaúcho tipo exportação, mas que tinha dado para aquelas coisas. Ninguém queria falar nada pra não melindrar o moço. Podia achar até que estavam pensando que ele era veado. Naquela noite, houve uma churrasqueada e um baile pro doutor e foi depois de dançar uma marca com o compadre Clarindo que o analista de Bagé convidou:


― Vamos até lá fora, tchê?


Conversaram muito embaixo da figueira e teve uma hora em que os dois desapareceram nuns matos. Quando voltaram, o compadre Clarindo foi correndo trocar a roupa de prenda pelas bombachas. O analista de Bagé foi cercado. Como conseguira o milagre?


― Bueno. Charlamos um pouco. Ele me contou que achava roupa de prenda mui lindo e que seu sonho era usar tranças, tchê. Daí eu disse: “Tem que agüentar a outra parte.” Aí ele perguntou: “Que outra parte?” Fomos até o mato e eu expus meu argumento... Aí ele saiu correndo.


― Deve ser um argumento e tanto.


― Modéstia à parte.


Hoje o compadre Clarindo está aí, emprenhando até china de fiscal de Receita.


Ainda tem uns hábitos meio estranhos, é verdade. Mas as tranças loiras até que combinam com o bigode preto.





Cuia




Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé ― segundo ele, “mais prestimosa que mãe de noiva” ―, tem sempre uma chaleira com água quente pronta para o mate. O analista gosta de oferecer chimarrão a seus pacientes e, como ele diz, “charlar passando a cuia, que loucura não tem micróbio”. Um dia entrou um paciente novo no consultório.


― Buenas, tchê ― saudou o analista. ― Se abanque no más.


O moço deitou no divã coberto com um pelego e o analista foi logo lhe alcançando a cuia com erva nova. O moço observou:


― Cuia mais linda.


― Cosa mui especial. Me deu meu primeiro paciente. O coronel Macedônio, lá pras banda de Lavras.


― A troco de quê? ― quis saber o moço, chupando a bomba.


― Pues tava variando, pensando que era metade homem e metade cavalo. Curei o animal.


― Oigalê.


― Ele até que não se importava, pues poupava montaria. A família é que encrencou com a bosta dentro de casa.


― A la putcha.


O moço deu outra chupada, depois examinou a cuia com mais cuidado.


― Curtida barbaridade. ― Também. Mais usada que pronome oblíquo em conversa de professor.


― Oigatê.


E a todas estas o moço não devolvia a cuia. O analista perguntou:


― Mas o que é que lhe traz aqui, índio velho?


― É esta mania que eu tenho, doutor.


― Pos desembuche.


― Gosto de roubar as coisas.


― Sim.


Era cleptomania. O paciente continuou a falar, mas o analista não ouvia mais.


Estava de olho na sua cuia.


― Passa ― disse o analista.


― Não passa, doutor. Tenho esta mania desde piá.


― Passa a cuia.


― O senhor pode me curar, doutor?


― Primero devolve a cuia.


O moço devolveu. Daí para diante, só o analista tomou chimarrão. E cada vez que o paciente estendia o braço para receber a cuia de volta, ganhava um tapa na mão.






Complexo




O analista de Bagé recebe seus clientes de bombacha e pé no chão, nunca deixa de oferecer um chimarrão “pra clarear a urina e as idéia” e o divã do seu consultório é coberto com um pelego. Tudo isto é verdade. Mas algumas coisas que contam sobre o analista de Bagé são inventadas.


Como ele mesmo diz, “tão botando mais coisa na minha boca que água em pirão de quartel”. Não é verdade que as suas sessões de análise em grupo virem fandango e que ele as chame de “freudango”, ou “arrasta-trauma”. Ele se declara “mais ortodoxo que cafiaspirina e braguilha com botão”. Só o que fez foi mandar sua recepcionista Lindaura (“uma china que eu tava criando pra cruza mas passou do ponto”) acomp anhar as sessões com o seu acordeom de madrepérola, “tão chique que em vez de baixo tem gaffe”. Mas é claro que se alguém quiser dançar, desde que seja mantido o respeito, pode. Outra idéia do analista de Bagé foi promover jogos de futebol de salão entre os seus grupos de análise. Jogam os sádicos num time e os masoquistas no outro. Assim, o jogo pode ser violento que ninguém se importa.


Mas o analista de Bagé não descuida dos seus clientes individuais. Outro dia recebeu um que teve que ser empurrado para dentro do consultório pela Lindaura.


― Mas que índio más xucro ― disse o analista, puxando o moço pelo braço.


― Ele diz que não quer tirar o seu tempo ― disse a Lindaura.


― Mas tu não tá tirando, tchê. Ta comprando.


― Mesmo assim... ― disse o moço, humildemente.


― Não te fresqueia e deita.


― Mas...


― Deita! ― ordenou o analista, ajudando-o a se decidir com um empurrão. ― Aceita um mate?


― Quem sou eu.


― Mas tu parece cascudo atravessando galinheiro, tchê. Qual é o causo?


― É uma bobagem...


― Desembucha.


― É que eu tenho este complexo...


― Sei.


― O senhor vai até achar engraçado.


― Engraçado é gorda botando as calça. Fala logo que eu tou com a salinha cheia de louco.


― É um complexinho.


― Tô ouvindo.


― Fico até envergonhado. Tanto complexo grande por aí...


― Fala, animal!


― Meu complexo, coitado, é de inferioridade.


― E tu quer ser curado, no más.


― Se não der muito trabalho...


― Olha aqui, ó bagual. O que tu tem é vaidade.


― Eu?


― Mais vaidoso que guri em chineiro. Conheço gente inferior aos monte. Inferior como tu.


― E daí?


― Daí que nenhuma pensa que é doença!




Sanfona




Embora se declare um freudiano “mais ortodoxo que suspensório e pastilha Valda”, o analista de Bagé tem experimentado com novas técnicas que, eventualmente, podem ser adotadas por outros analistas. Foi dele, por exemplo, a idéia de fazer análise em grupo com sanfona. E se algum paciente quiser, em vez de falar, trovar, “pos que trove”. O analista de Bagé responde em cima.


Foi o caso daquele moço que começou:


“Tenho medo do escuro qualquer coisa me dá ânsia.


Fujo da sombra do muro, do preto quero distância.


Suo frio e desconjuro... Isso é trauma de infância?”


Ao que o analista de Bagé respondeu:


“Isso é trauma de infância, mas não é a explicação.


Conheço piá de estância que monta em bicho-papão.


Não tem segunda instância: tu é que é um grande cagão.”




Teve aquela paciente que cantou:


“O meu marido me ama, mas regrediu, caso feio.


Trouxe de casa o Autorama e a sua mãe também veio.


Quando me leva pra cama sempre põe a mãe no meio.


E o analista:


“Sempre põe a mãe no meio, essa não é uma boa.


Tu deve andar com receio que nem velha em canoa.


Diz pra ele que o Édipo Rei, ó... acabou cego e rindo à toa.”


Um cantou:


“Pra macho que usa espora, china é lenço de papel.


Sempre usei e joguei fora e comia como mel.


Não sei o que houve agora ou virei veado ou pinel.”


E o analista:


“Ou virou veado ou pinel e foi muito merecido.


Mulher não foi feita no céu pra guasca assim ser servido.


Não é lenço de papel, ela é lenço de tecido.”




Lindaura




Contam que o analista de Bagé não está muito contente com sua recepcionista Lindaura porque, segundo diz, “ela é como trigo: lindo de se vê, mas só dá uma vez por ano”. Mesmo assim, não a substitui porque a Lindaura “é esperta que nem gringo de venda” e sabe o que fazerem qualquer situação. Embora goste de dizer que “mulher só serve pra três coisas e pras outras duas tem diarista”, o analista de Bagé reconhece que deve até sua vida a Lindaura. Como no caso da prenda de botas.


Pues diz que entrou uma mulher no consultório pisando mais firme que delegado novo em chineiro. Abriu a porta num trancaço, parou com as pernas abertas e as mãos na cintura e gritou:


― Buenas!


O analista de Bagé ficou de pé num salto de assustar cusco e também gritou, mais grosso ainda:


― Buenas!


Ficaram os dois se estudando em silêncio. Aí ela levou a mão atrás e tirou uma faca do cinturão. O analista de Bagé pegou o facão, deu um chute no banquinho e recuou até a parede. Desafiou:


― Vem que aqui tem homem. E da fronteira!


Mas a mulher pegou um rolo de fumo de dentro da bombacha e uma palhinha de trás da orelha. Começou a picar o fumo, olhando para o analista por baixo das sobrancelhas grossas.


― Quero me analisá! ― gritou.


― Pos se apeie e deite no divã!


Ela olhou para o divã coberto com um pelego. Depois voltou a encarar o analista. Acabou de enrolar o cigarro e botou num canto da boca. Disse:


― Não me deito pra homem nenhum.


― Pos de pé eu só analiso cavalo.


Novo silêncio enquanto os dois se estudavam. Ela apontou para a ponta do palheiro e disse:


― Tem fogo?


― Pra mim mulher que pita, se não é francesa, é piguancha.


― Francesa eu não sou.


― Já vi pelo sotaque.


― E piguancha é a tua mãe.


Atracaram-se. Rolaram pelo chão. Ela acabou por cima, com um joelho sobre o peito do analista. Ele perguntou:


― Como é que tu ficou desse jeito, tchê?


― Um trauma.


― Pois toma outro.


E acertou um manetaço no lado da cabeça dela. Ela rolou para baixo do divã.


Levantou com divã e tudo e veio, agora para liquidar. Foi quando o laço da Lindaura cruzou os ares e a imobilizou. O analista de Bagé e a Lindaura amarraram a mulher juntos, mas tiveram que chamar o zelador para colocá-la no divã. Sobravam trinta minutos para a análise, mas o analista cobrou os cinqüenta, de vingança, porque ainda estava com a paleta dolorida.


Depois que a mulher saiu, ainda ouvindo os passo s das botas dela no corredor, o analista de Bagé, excitado com a briga, disse para a Lindaura:


― Te deita no divã.


Mas a Lindaura não transigiu:


― Só no Natal.








O depoimento do analista de bagé




Existem tantas histórias por aí sobre o analista de Bagé ― suas origens, sua vida particular, seus métodos de trabalho ― que fica difícil separar a lenda da realidade. A sua terapia do joelhaço é, como diz o próprio analista, “mais comentada que vida de manicure”. Já existe, inclusive, uma escola de psicoterapia que adotou o joelhaço, chamado nos Estados Unidos de BSM, ou “Bage Sensitivization Method”, embora o analista advirta que ele só deve ser aplicado por um especialista, “pra não rengued (1) o vivente (2). Dependendo da versão, o analista tem seu consultório em Bagé mesmo, em Porto Alegre ou no Baixo Leblon. Segundo alguns, ele teria abandonado a profissão e esta ria vivendo em Ipanema com uma artista da Globo. Outros dizem que ele se aposentou e vive numa estância de Bagé com sua recepcionista Lindaura ― que agora não recebe mais, só dá ― e se ocupa em contar suas memórias em livro, quando não está contando seu gado. Onde está, afinal, a verdade? Onde está o analista? Como ele desenvolveu a terapia do joelhaço?




1. Rengued: Renguear, fazer ficar rengo, manco, como “tava um frio de rengueá sentinela” ou “tava um calor de rengueá sorveteiro”.


2. Vivente: Pessoa. Viva, naturalmente.




Como vive, como ama, o que pensa?


Acho que posso acabar com todas estas dúvidas. Tenho um depoimento do próprio analista de Bagé contando tudo. É verdade que sempre existe o risco desta ser apenas mais uma versão. Mas, como diz o próprio analista, cripticamente, “a verdade é uma mentira que aconteceu”. Ou coisa parecida.


O depoimento do analista começa com um comentário sobre a sua fama de grosso.


“Grosso é o intestino, que vive dando cagada. De grosso só tenho, aqui, o pirata de barba negra e um olho só (3). Te fresqueia! Tenho é aquela franqueza que já nasce com o bageense, junto com a cuia (4) e as esporas. Digo o que tenho que dizer e o último desaforo que levei pra casa foi a minha mulher.”




3. Pirata de barba negra e um olho só: Imagem obscura, de sentido duvidoso.


Talvez uma referência ao lado negativo que todos nós carregamos no íntimo.


4. Cuia: Cabaça que contém o mate do chimarrão.




Sobre a terapia do joelhaço, ele explica:


“Se algum paciente vem com muita história, eu digo logo que lengalenga é conversa de japonês. Gosto de ir direto ao caroço da questã (5) Foi por isso que desenvolvi a terapia do joelhaço. Sou freudiano de carteirinha assinada.




5. Caroço da questã: Âmago da questão.




Mais ortodoxo que pijama listrado. Mas gosto de experimentar, porque paciente que cai no meu pelego (6) sai curado nem que ele morra. Eu já tava até os corno de tanta gente se queixando de angústia existencial, da indiferença do universo, do terror do infinito. Meu pai, o velho Adão, sempre me dizia pra não me preocupa com o infinito porque o infinito ficava pra lá de Lavras. Em Bagé não tinha angústia existencial e como em Bagé nunca teve fresco... Fui me enchendo com aquela fileira de desocupados que só pensavam no universo como se o universo fosse tudo. Um dia me entrou um índio com cara de quem preferia não ter nasci do e eu não me segurei nas bombacha. Fui lá e lhe apliquei um joelhaço. Bem ali onde tudo começa e tudo se resolve. O índio velho se dobrou como um canivete. Levei ele pro pelego com jeito. Ofereci um mate. Ele disse:




6. Pelego: O couro e os pêlos da ovelha, usa do no Sul como tapete ou revestimento. Muitos gostam de fazer amor sobre um pelego. É sabido que alguns fazem isto sem tirar o pêlo da ovelha.




― Aahhnn.


Queria dizer não se moleste (7 ). Depois que conseguiu falar, começou aquela cantilena, más chato que padre da colônia (8). Porque era finitude humana, porque era o absurdo da existência, porque era o vazio cósmico, porque a terra não valia nada... Aí eu entesei que nem seminarista no sábado (9).




7. Não se moleste: Não se incomode.


8. Padre da colônia: Padre da região colonial, italiana ou alemã, do Rio Grande. Seus sermões, se pudessem ser engarrafados, seriam vendidos como estupefacientes.


9. Seminarista no sábado: Referência inexplicável.




― Péraí ó bagual (l0), tu tá falando da minha terra.


― Mas a terra é uma titica (11) de galinha ― disse ele.


― Titica é tu e galinha é a tua mãe ― argumentei. ― A terra é muito melhor que muito desses planeta que andam se rebolando por aí feito china de delegado (12).


Marte é só pedra. Vênus é um lixo. Saturno ta mais cheio de gás que alemão em fim de kerb (13) . A terra tem tudo que um cristão precisa: oxigênio, mulher ancuda, moganga (14) com leite gordo...


Mas o índio não se convenceu. Disse que sentia um aperto na garganta cada vez que pensava no infinito e que aquela era a pior sensação que um vivente podia sentir.




10. Bagual: Cavalo arisco.


11. Titica: Fezes de galinha.


12. China de delegado: China de delegado.


13. Alemão em fim de kerb: “Kerbs” são festas realizadas na colônia alemã. Geralmente duram mais de um dia, com grande consumo de cerveja e comida de alta fermentação.


14. Moganga: Um parente próximo da abóbora, mas os dois não se falam.




― É pior que fome, desgraçado? ― perguntei.


Ele pensou um pouco e disse:


― É


Ai eu cheguei o banquinho pra perto e perguntei:


― É pior que joelhaço?


Não era. A partir daí ele começou a pensar melhor nas coisas. Abandonou a angústia e decidiu aproveitar a vida. Deu um desfalque na firma e todos os anos me manda um cartão do Taiti. Desde então tenho usado a terapia do joelhaço com sucesso. Só não recomendo com masoquista porque masoquista vai pelo joelhaço, não pra ser curado.


Uma vez, num congresso de psicanalista em Paris ― que é uma espécie de Bagé com metrô ―, me perguntaram de onde tinha saído a idéia do joelhaço e eu contei. Tinha reunido alguns dos maiores psicanalistas do mundo no meu quarto no hotel, feito um fogo de chão e a indiada tava ali, passando a cuia e mentindo más que guri pra entrar em baile. E eu contei a história do meu tio Lautério, que era médico.


Pues cada vez que alguém lá em casa adoecia, chamavam o tio Lautério. Até hoje ninguém sabe direito qual era a especialidade dele, mas era chamado pra tudo, desde mordida até enfarte. Tinha um metodo que simplificava tudo. Pra doença que começava com consoante, receitava lavagem. Pras que começavam com vogal, como angina ou icterícia, receitava emplastro. E dava certo, porque na minha família só se morria de briga em bolicho (15). Pues um dia eu, que era tão piá (16) que ainda ficava na ponta dos pés pra mijar em penico, tive uma dor de ouvido. Chamaram tio Lautério. Ele chegou e me encontrou chorando. A primeira cosa que disse foi pra me consolá:


― Deixa de ser veado (17), ó cagão.




15. Bolicho: Bar, bodega.


16. Piá: Menino.


17. Veado: Homossexual.




Mas tava doendo demais e eu não parei de chorar. Aí ele começou a me dar um beliscão. E perguntava:


― O que tá pior, o ouvido ou o beliscão? E eu berrava:


― É o ouvido!


Depois:


― Tá empatado!


E depois:


― É o beliscão!


Aí ele apertou mais até que eu gritei:


― Tô com saudade da dor de ouvido!


Me lembrei do tio Lautério quando decidi instituir o joelhaço. Porque a verdade é que tem muito paciente que acha que o umbigo dele é o centro do mundo, quando todo mundo sabe que é Bagé. Então o vivente tá com dinheiro na poupança, come todos os dias, tem uma amante chamada Suzete, e mesmo assim fica remoendo lá dentro, catando angústia como passarinho bicando bosta. Um bom joelhaço sacode as cosa e restabelece as prioridade.


Afinal, nestes tempos que estamos atravessando, meio de banda como Aero Willys em lodaçal, quem tem dinheiro pra pagar uma análise devia se envergonhar de procurar um analista. É claro que a psicanálise não tem culpa de ser uma cosa de elite, uma espécie de pólo mental. Não foi ela que fez o mundo assim, arrevesado (18) barbaridade. Mas quando dá razão a quem diz que tudo tem que ser resolvido lá dentro de cada um, e não a qui fora no social, ela até que é cúmplice. Como dizia o meu pai, o velho Adão: gengiva não morde mas segura os dente.”




18. Arrevesado: Atravancado, trocado.




Onde é que o analista de Bagé tem seu consultório?


“Pues sou bairrista barbaridade. Só sei viver com conterrâneo. No meio de gaúcho me sinto como bebê no peito: tudo que eu preciso tá ali à mão. Gosto de estar rodeado de gaúcho como braseiro de galpão. Por isso moro no Rio de Janeiro.


Abri um consultório no Baixo Leblon ― que é um a espécie de Bagé com manobrista ― e to com uma clientela louca de especial, e especial de louca. Se eu estranhei um pouco a mudança? Bueno, no princípio, me mangueavam as ropa e ficavam olhando pras minha bombacha como se eu tivesse sem. Aí eu ameaçava botar mesmo o pirata pra fora ou sair no manetaço (19) e a indiada se apeanava. Que mal hay em ir de bombacha à praia? Pra entrar no tal de mar eu só tiro o lenço encarnado, que cosa sagrada não se lava com sal. No meu primeiro dia na praia de Ipanema veio um guasca (20), más cabeludo que o caso do Rio centro, e disse:




19. Manetaço: Um joelhaço com a mão.


20. Guasca: Gaúcho, mas no mau sentido.




― Ó cara, qual é a do narguilé?


― Que narguilé, tchê?


― Não desvia, xará. Deixa eu traga o teu barato que eu tou sem nenhum. Tô puxando até espiral Boa-Noite, falou? Solidariedade, cara. Somos tudo polonês.


Pôs não é que o peludo quis me tirar a cuia da mão, o que pra gaúcho equivale a xingar a mãe e o Bento Gonçalves juntos? Dei-lhe um trompaço (21) que derrubou gente até o Arpoador, pôs a praia estava cheia.




21. Trompaço: Joelhaço geral.




Tive problemas com a Lindaura. A chinoca me inventa de aparecer no consultório de gins, com o rabo más apertado que as classe de baixa renda.


Mandei ela tira as calças ali mesmo e já levei pros pelego, que não posso ver cavalo encilhado ou mulher de bunda solta sem montar. No segundo dia de Rio, a Lindaura já estava chiando feito locomotiva, tchê. Proibi. Na minha terra, mulher que fala chiado ou com erre muito carregado, se não é defeito, é desfrute.


O que dá de piguancha (22) neste Rio de Janeiro! Teve uma que veio me vê porque nunca tinha tido um orgasmo. Até me perguntou como era. Respondi:




22. Piguancha: Puta, no bom sentido.




― Sabe quando a água do chuveiro sai fria e a gente chupa a respiração e faz “ohaaãoaaãum”?


― Sei.


― Pos é assim.


― E a gente fica toda molhada?


― Más o menos...


Ela não entendeu a teoria e passamos à prática, que comigo é na paleta. Teve quatro, mas eu só cobrei dois.


No Rio tudo é exagerado. Me apareceu um vivente com o maior complexo de Édipo que eu já vi. O índio velho queria ir pra cama com a mãe e duas tias.


Queria dinamitar o pai. O tratamento foi difícil, mas acho que no fim consegui controlar o animal. Na última sessão, fiz um teste, sutilmente.


― Tu quer comer a tua mãe?


― Eu não!


― Tem certeza?


― Tenho.


― Alguma pergunta?


― Tenho.


― Qual?


― Bolinar, pode?


Outro era megalomaníaco. Um gaúcho que também tinha se mudado pro Rio.


Chegou dizendo:


― Vou ser governador deste troço.


― Te deita, tchê ― disse eu, tentando controlar minha paciência. A gente tem que agüentar cada um...


Também foi um tratamento difícil barbaridade. Não chegou a terminar. Ele não me apareceu mais. Não sei se este eu domei ou não.”










Pelego




E sabido que todo psicanalista deve, ele mesmo, fazer análise antes de começar a analisar os outros. Segundo o analista de Bagé, isto acontece pela mesma razão que um cirurgião desinfeta as mãos “antes de mexê em tripa alheia” e para “o vivente descobri se não ta na profissão só pra ouvi bandalheira”. O próprio analista de Bagé precisou se analisar, mas não passou da primeira sessão e teve que ser contido para não cumprir sua ameaça de sangrar seu analista, porque “esse aí só serve pra morcilha”.


― Mas morcilha de sangue de gente não presta.


― Então não serve pra nada!


Nunca se soube muito bem o que houve durante a sessão, mas por muito tempo o analista de Bagé só se referia ao outro como “más bisbilhoteiro que filho de empregada”.


A solução foi o próprio analista de Bagé se auto-analisar. Ele mesmo conta que foi um pouco cansativo ficar pulando do banquinho para o pelego e do pelego para o banquinho durante cinqüenta minutos, mas valeu a pena.


― Hoje me conheço de me tratar por tu e dividi palheiro, tchê.


Ninguém esteve presente, é claro, mas foi possível fazer uma razoável reconstituição do diálogo entre o analista de Bagé e ele mesmo, logo depois da formatura.


― Mas então, tchê?


― Pos to aqui.


― Que venham os loco?


― Que venham os loco que eu reparto de pechada, tchê.


― Oigalê!


― Por Freud e Silveira Martins.


― Oigatê!


― Se corcoveá, eu monto.


― E dá de relho.


― Bueno, de relho não. De relho, só cavalo aporreado e china respondona.


― Guasca velho! E tu não tem nada pra botar pra fora? Recalque, complexo ou arroto?


― Mas o que é isso, índio velho? Tu sabe que bageense é como vitrine de belchior, tá tudo ali na frente. Escondido só bragueta de gordo.


― Não é como essas outra raça.


― Pos não é. Tem raça que é que nem cestinha de morango. Por baixo é tudo podre.


― Bueno, se todo mundo fosse gaúcho, ser gaúcho não era vantagem.


― E ia faltar mate.


― Deus fez os outros primeiro e o gaúcho quando pegou a pratica.


― Por isso é que tem tanto índio desajustado.


― Teu trabalho é cura esses desgarrado.


― E tu acha que eu to pronto, tchê?


― Mas tu tá virando carvão, tchê! Salta daí e vai trabalhar.










Delírios




O analista de Bagé às vezes se cansa da profissão ― “O que me aparece de louco, tchê!” ―, mas sempre diz que consultório de psicanalista, em matéria de tipos humanos interessantes, é “más variado que a baldeação em Cacequi”. Só é preciso ter um pouco de paciência. Como na vez em que a Lindaura introduziu no consultório um homenzinho que se apresentou como “João Figueiredo” e em seguida se identificou: “Presidente”.


― Buenas. Se abanque, no más.


― Qual é a sua patente? ― perguntou o homenzinho, recusando-se a deitar no divã coberto com um pelego.


― Pos é daquelas branca, tchê. Não reparei na marca.


― Digo, patente militar.


― Dei baixa como cabo.


― Fique sabendo que nem o ministro da Guerra manda em mim.


― Mas eu sou do FMI! ― disse o analista, levantando o homenzinho e atirando-o em cima do divã.


Foi um caso difícil e no fim do tratamento o homenzinho se declarou curado do delírio de grandeza. Disse que seu nome era Pinto e trabalhava com miudezas.


Mas na saída, depois da última sessão, agradeceu ao analista efusivamente e, puxando-o por um braço, segredou:


― Escuta. Quem vai escolher o meu sucessor sou eu. Se você quiser...


O analista puxou o homenzinho de volta e o atirou de novo no pelego. Quando a Lindaura veio ver o que estava acontecendo, encontrou o analista arregaçando as mangas. Ele perguntou:


― Quem é o próximo?


― Um édipo salteado que não larga avó. ― Suspende!




* * *




Outra vez um paciente com alucinação não chegou nem a começar o tratamento.


Entrou no consultório e dali a pouco foi posto porta afora pelo analista, aos gritos de “Te enxerga, ó bosta!”.


― O que foi? ― quis saber a Lindaura.


― Esses louco tão se passando...


― Esse disse que era quem?


― O Freud!


E ficou resmungando.


― Mas não respeitam mais nada!








Boato




As pessoas gostam de imaginar coisas. Quando foi anunciado que a princesa Diana da Inglaterra estava com uma doença nervosa que a fez emagrecer, e como o analista de Bagé foi visto no aeroporto do Rio de janeiro embarcando num vôo internacional com sua garrafa térmica, logo surgiu o boato de que os dois fatos tinham ligação. Segundo o próprio analista, “pra boato e briga em bolicho, basta um cochicho”. A propósito, o analista de Bagé realça a importância sociológica da garrafa térmica, que aumentou em muito a mobilidade do gaúcho ― já que chaleira e lenha vermelha são difíceis de carregar ― e é hoje a segunda maior responsável pela evasão de gaúchos para outros estados, depois do governo.


Dizem que, apesar de um problema na alfândega de Londres ― os pelegos e o fumo em corda foram confiscados para exame pelas autoridades sanitárias e o facão ficou ― o analista de Bagé foi recebido “como vipe, tchê” e levado às pressa s para o palácio, já que sua viagem fora a pedido da família Real. Qual teria sido a sua impressão de Lady Di?


― Aquilo é potranca pra três guri e uma guaiaca. Quando a gente pensa que tá terminando, ainda tem mais. Oigalê raça troncuda!


Mas o analista de Bagé observa ria que a boa estrutura óssea da moça salta, literalmente, aos olhos, porque de carne não tinha mais quase nada. Aliás, recorreram ao analista de Bagé quando o último recurso, a acupuntura, foi descartado por falta do que espetar. Embora a sua crescente reputação internacional, o analista de Bagé só é chamado no fim de uma escalada bem definida: medicina convencional, curandeirismo, acupuntura e ele.


De acordo com o boato, antes de falar com a paciente, o analista de Bagé teria pedido um exame físico para investigar a possibilidade de que a tristeza da princesa tivesse alguma causa anatômica.


― Impossible, sir. Nenhum homem pode examinar o corpo da princesa, muito menos um plebeu e muito menos de Bagé.


― A princesa não. O príncipe.


No fim, ainda segundo a fantasia das pessoas, o analista de Bagé, depois de ouvir a princesa contar seus problemas, suas angústias e inquietações, teria diagnostica do: “Frescura.” E teria receitado uma dieta específica. Com alguma dificuldade, pois seu inglês é da fronteira. Quer dizer, igual ao espanhol, só com o agá mais aspirado.


― Foi más duro que ferra cavalo de estátua, tchê. A indiada não queria entendê o que é moganga com leite gordo!



Raízes




Pouco se sabe da vida pregressa ― ou “os antes”, como ele mesmo diria ― do analista de Bagé. Embora hoje tenha consultório na cidade grande e só atenda neuróticos importantes, cobrando muito e por minuto ― segundo ele, “que é pra ninguém se aboleta e inventar de passar o dia” ―, o analista de Bagé teve um começo difícil. Contam, inclusive, que ele percorria o interior do Rio Grande do Sul numa charrete, com um divã portátil, oferecendo tratamento de porta de estância em porta de estância.


― Buenas!


― Como lê vai?


― Par aí, gauderiando más que cigano e candidato.


― Pos se apeie e tome um mate.


― Pos aceito. Sou como china passada, não ar reganho convite. E tou com a goela más seca que penico de cego.


― Oigatê. O amigo vende o quê?


― Pos sou psicanalista, tchê.


― Oigatê. Por aqui já apareceu até maranhense. Psicanalista é o primeiro.


― Sou freudiano e não renego.


― Freudiano, então, nem se fala.


― Será que não tem na casa alguém precisando de uma sessão? Cinqüenta minutos e aceito pagamento em charque.


― Pos a Orestina...


― Que tem?


― Anda com riso frouxo.


― Sei.


― Ri sozinha.


― Que cosa.


― Qualquer cosa, se arreganha.


― Não é cócega?


― Pos não é.


― Que idade tem a bicha?


― Dezessete.


― Essa não tem nada.


― Mas ri até de topada.


― É da idade.


― E ela não corre perigo?


― Só de engravidá.


Ao contrário do que se pensa, o analista de Bagé mantém-se a par de todos os desenvolvimentos na área da psiquiatria, embora se declare “freudiano de oito costados” e “más ortodoxo que pomada Minâncora”. Ele tem uma boa e atualizada biblioteca que consulta com freqüência. Sempre que pega um caso mais difícil, no entanto, o analista de Bagé recorre a um grosso volume em alemão na estante do seu consultório. É entre suas páginas que guarda, escritas a toco de lápis em folhas soltas de um caderno de armazém, as máximas do seu pai, o velho


Adão. Quando, diante de um caso “dos encroado”, o analista de Bagé se vê “más apertado que jeans de fresco”, as máximas do velho Adão muitas vezes sugerem uma saída. Eis algumas delas:


“Mate e china, quanto mais novo, mais quente.”


“Hay mil regras pra come, mas nenhuma pra cagá.”


“Pra segura mulher em casa e cavalo em campo aberto, só carece de um pau firme.”


Dando a idéia de que o cúmplice é igual ao criminoso, ou então que muitas vezes o que parece sem importância é essencial: “A gengiva não morde, mas segura os dente.”


Sobre as sutis diferenças: “Milonga e tango? Quibebe e mogango.” “Puro-sangue ou bagual, a bosta é igual.”


Uma variação: “Meleca de rainha é igual à minha.”


Um sábio comentário sobre as interpretações subjetivas: “Roda de carreta chega cantando e se vai gemendo.”


Algumas comparações: “Bravateiro como castelhano em chineiro”; “Sujo como pé de guri”; “Branco como catarina assustado”; “Duro como trança de beata.”


“Más vale ser touro brocha que boi tesudo.”


“Pra guaipeca, pontapé é mimo.”


“Más sagrado que Deus e a mãe, só dívida de jogo.”


Das deduções simples: “Se a toca é ancha, o tatu é gordo.”


Do perigo das deduções apressadas: “Pela cabel eira, o julgamento é canhestro: pode ser china ou maestro.”


“Más seco que penico de cego.”


“Más triste que tia em baile.”


“Cavalo de borracho sabe onde o bolicho dá sombra.”


“Marido de parteira dorme do lado da parede” (significado obscuro).


“Viúva moça é como louça: já foi usada, mas não se joga fora.”


“Se Deus fez o mundo em seis dias, só no Rio Grande gastou cinco.”










Mas bá




Contam que o analista de Bagé, embora se declare “mais antigo que emplastro” e freudiano de usar carteirinha, não renega as novas técnicas de análise.


Inclusive, inventou algumas. Segundo ele, o que vai longe sem sair do lugar é trilho. É preciso dinamizar a análise. Não se concebe mais que o paciente fale enquanto o analista cochila. Por isto, depois de inventar a análise em grupo com gaiteiro, “pra indiada se soltá”, ele está experimentando com sessões externas ou “à Ia fresca”, durante as quais paciente e analista saem à rua, e a análise é feita em qualquer lugar, num banco de praça, até num balcão de cafezinho.


― Ainda estou na fase anal-retentiva, doutor. Tenho esta obsessão infantil em não dar nada, nunca, a ninguém.


― Mas que cosa. Me passa o açúcar.


― Não passo.


As sessões de rua são boas para o paciente, pois ele foge da passividade um pouco humilhante do divã. (Se bem que o analista de Bagé adaptou um mecanismo de cadeira de dentista ao seu divã que, nos casos de complexo de inferioridade, vai ficando mais alto ao longo da sessão. “Controlo a altura na alpargata, e o coitadito pensa que melhorou.”) Para o analista também é bom, porque ele pode, por exemplo, ir ao banco e dar consulta ao mesmo tempo. Mas o que tem dado resultado mesmo são as análises no campo. Dependendo do caso, o analista de Bagé leva o paciente a caminhar no parque ou subir em morro. Ele nasceu na campanha e costuma dizer que é homem “de quatro horizontes”. E quando o paciente dá sinais de estar muito angustiado pela vida urbana, o analista de Bagé grita para Lindaura, sua recepcionista: “Prepara os isopor, que este é caso de piquenique.” Aliás, ele diz que é tradicionalista de botar o Paixão num bolso e o Barbosa Lessa no outro, mas que hoje em dia não se admite gaúcho autêntico sem garrafa térmica. E vão pro mato.


Foi sentado debaixo de uma figueira, mastigando um talo, que o analista de Bagé ouviu a sua paciente ― “mais linda que manta de charque gordo”, como diria depois ― declarar que não conseguia sentir prazer com homem algum, a não ser que houvesse a ameaça de punição. O analista de Bagé tentou manter o distanciamento clínico, mas estava batendo sol na bombacha e não deu. Olhou rapidamente em volta e avistou um relvado na forma de uma cama redonda.


Deus existe, pensou, e Freud está à sua direita , anotando tudo. Sutilmente, o analista de Bagé sugeriu:


― Tira a roupa.


― Serei punida, depois?


― Mas bá.


― Como? Pelo sentimento de culpa?


― Não.


― Desenvolverei uma neurose? Meu ego, que exige a punição, combaterá meu id, que quer ser satisfeito a qualquer custo, mesmo sabendo que ter relações com meu analista, que personifica o meu superego, não me causará culpa, pois posso racionalizá-las como terapia de apoio? Será esse o meu castigo?


― Não.


― Então qual?


― Urticária.


― Oba.







Metade cavalo




No começo de sua carreira, o analista de Bagé também era chamado para atender casos a domicilio. Como na vez em que um peão foi chamar o analista no meio da noite. Era para o seu patrão, seu Vespasiano. Enquanto encilhava o cavalo, o analista de Bagé pediu detalhes sobre o caso. O peão contou que seu Vespasiano tava variando.


― Pensa que é metade gente, metade animal.


― Que animal?


― Cavalo.


― Que pêlo?


― Castanho.


― Que metade?


― A de baixo.


― Bueno. Pelo menos vou poder charlar com o homem.


Chegaram na estância quase de manhãzinha. Seu Vespasiano já estava de pé, mastigando seu milho. Recebeu o analista de Bagé com desconfiança.


― Que lê traz aqui?


Pôs vim olhar a sua tropa. Um cavalo meu desgarrou pra estas bandas.


― E tu cria cavalo no consultório, tchê?


― Tem cliente que só a patada.


― Pôs seu cavalo não tá aqui.


― Só vendo.


Saíram para o campo. O analista de Bagé a cavalo e o seu Vespasiano galopando do seu lado. Olharam toda a tropa. Aí o analista começou a examinar seu Vespasiano de cima a baixo.


― Tá me olhando por quê? ― quis saber seu Vespasiano, carrancudo.


― Acho que to reconhecendo meu castanho.


― Endoidou? Eu sou o Vespasiano.


― Só até a cintura.


― Pra baixo também é meu.


― Então mostra a marca.


― O quê?


― Quero ver a marca na anca. Se não tá marcado, é meu.


A discussão ainda durou um pouco, mas no fim seu Vespasiano se convenceu que não era metade cavalo. Lamentou bastante porque daquele jeito estava economizando montaria. Mas a família suspirou aliviada. Não agüentava mais a bosta no tapete.





FIM
Com carinho e um bom estudo  a todos do  9 ano do cantinho brasileiro.
bjs Prof Dr Master Reikiana
Aldry Suzuki